O Negro na obra de Machado de Assis
Le
Noir dans l'œuvre de Machado de Assis
Resumo:
Machado de Assis é um ícone do panorama da literatura brasileira. Apesar da
origem humilde e pobre, esse fato não o impediu de ultrapassar os preconceitos
existentes em sua época, conseguindo uma posição de prestígio dentro da
sociedade e tornando-se uma exceção em seu tempo. Apesar de acusado de absenteísmo, utilizou sua
escrita para criticar com ironia o negro na sociedade de sua época.
Palavras-chave:
Literatura. Questão racial. Racismo. Escravatura. Abolição. História do Brasil.
Résumé:
Machado de Assis est une icône dans le panorama de la littérature brésilienne.
Malgré ses origines modestes et pauvres, cela ne l'a pas empêché de surmonter
les préjugés qui existaient à son époque, d'accéder à une position prestigieuse
au sein de la société et de devenir une exception à son époque. Bien qu’accusé
d’absentéisme, il a utilisé ses écrits pour critiquer ironiquement les Noirs
dans la société de son époque.
Mots-clés:
Littérature. Question raciale. Racisme. Esclavage. Abolition. Histoire du
Brésil.
Recordemos
a lucidez de Grada Kilomba que afirmou in litteris: "O colonialismo
é uma ferida que nunca foi tratada. Uma ferida que dói sempre, por vezes
infecta, e outras vezes sangra". Enfim, Machado de Assis fora
estigmatizado por muitos críticos de seu tempo e mesmo depois por não se
posicionar diante da causa dos negros cativos, adotando um rótulo absenteísta
que fora relacionado à sua imagem por muito tempo.
Há em
sua escrita concretas pistas de denúncia, com investigação do contexto
histórico de Machado de Assis e, ainda o debate de estudiosos como sociólogos e
historiadores que notaram claras pistas da história brasileira em seu legado
literário. Em "O caso da vara" de 1899, "Sabina" de 1875 e
"Pai contra mãe" de 1906 abordou a escravidão e o personagem negro o
que revelou um país escravocrata e seus espólios cruéis.
"A
ideia que fazemos dos grandes vultos é quase sempre tão diversa da sua
personalidade real como as estátuas dos homens de carne e osso que foram um
dia. Como a estátua, a celebridade fixa o indivíduo em atitudes que podem ter
sido culminantes, ou características, mas não foram únicas, nem habituais. Uma
e outra tiram-lhe o movimento, o desalinho, o calor da vida. De um homem, de
alguma coisa de natural e esquivo, de familiar e incompreensível, fazem um
boneco de bronze, rígido e definitivo sem mistérios como sem fraquezas". (PEREIRA, 2017).
Machado
de Assis nascera em 1839 no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, quando
ainda vigorava o Brasil Império. O cenário histórico-cultural do país do século
XIX nos remete a um Segundo Reinado do Imperador Dom Pedro II (1840-1889), há
três períodos, a saber: a contenção das rebeliões regenciais, a política
interna (1840-1850) e a política externa que contou com a Questão de Christie[1], conflitos platinos e a
Guerra do Paraguai; a economia nacional (1850-1870) e as leis abolicionistas e
ainda os movimentos republicanos (1870-1889). Vivenciávamos um governo
monarquista e um parlamentarismo às avessas[2].
No cenário econômico dominava a economia
cafeeira que era a fonte principal de lucros de latifundiários que dependiam da
mão de obra escrava. A industrialização trazida por Barão de Mauá bem como a
fundação de bancos, indústrias e ferrovias significava um notável progresso.
Porém, o governo imperial não colaborou financeiramente com o Barão, tanto que
enfrentou grandes dificuldades financeiras e terminou falido, pois a sociedade
então vigente era essencialmente agrária e escravocrata.
Cumpre
ainda destacar que: "A palavra “negro” é uma das mais polissêmicas do
vernáculo. Sua polissemia, quem sabe, contribuiria para seu desprezo na
caracterização de um corpus. Afro-brasileiro, expressão cunhada para a reflexão
dos estudos relativos aos traços culturais de origem africana, independeria da
presença do indivíduo de pele escura, e, portanto, daquele que sofre
diretamente as consequências da discriminação.
Portanto,
a palavra “negro” nos remete à reivindicação diante da existência do racismo,
ao passo que a expressão “afro-brasileiro” lança-nos, em sua semântica, ao
continente africano, com suas mais de 54 (cinquenta e quatro) nações, dentre as
quais nem todas são de maioria de pele escura, nem tampouco estão ligadas à
ascendência negro-brasileira. Remete-nos, porém, ao continente pela via das manifestações
culturais. Como literatura é cultura, então a palavra estaria mais apropriada a
servir como selo. (CUTI, 2010).
Nesse
cenário, os negros eram objeto de compra e venda, sendo utilizados para o
trabalho no campo, nas lavouras de café, cana de açúcar, dentre outros
afazeres. E, sofriam os mais diversos abusos e perversidades, bem como eram
forçados a viver de modo inumano e cruel.
Fausto
afirmou, in litteris: "“O
Brasil é o café e o café é o negro”[3]. Essa frase comum nos
círculos dominantes, na primeira metade do século XIX, só em parte é
verdadeira. O Brasil não era só o café, como não fora só açúcar. Além disso, a
produção cafeeira iria prosseguir no futuro, sem o concurso do trabalho
escravo. Mas não há dúvida de que nesse período boa parte da expansão do
tráfico de escravos se deveu às necessidades da lavoura de café". (FAUSTO,
2006).
Gilberto
Freyre em sua obra "Casa-Grande & Senzala" abordou sobre o
desespero dos cativos que era tão expressivo que chegavam a não ter desejo de
continuar vivendo, tanto que muitos se suicidavam comendo terra, enforcando-se,
envenenando-se com ervas e potagens dos mandingueiros (2003) o que reafirmou a
informação registrada por Jean-Charles Marie Expilly sobre os carregadores de
dejetos, adjetivados como "tigres", o que não se aplicava a
ferocidade mas ao aspecto de listras que se formavam em seus corpos. In
verbis:
"Ao
escravo negro se obrigou aos trabalhos mais imundos na higiene doméstica e
pública dos tempos coloniais. Um deles, o de carregar à cabeça, das casas para
as praias, os barris de excremento vulgarmente conhecidos por “tigres”[4]. Barris que nas
casas-grandes das cidades ficavam longos dias dentro de casa, debaixo da escada
ou em um outro recanto acumulando matéria. Quando o negro os levava é que já
não comportavam mais nada. Iam estourando de cheios. De cheios e de podres. Às
vezes largavam o fundo, emporcalhando-se então o carregador da cabeça aos pés.
Foram funções, essas e várias outras, quase tão vis, desempenhadas pelo escravo
africano com uma passividade animal. Entretanto, não foi com o negro que se
introduziu no Brasil o piolho; nem a "mão de cocar"; nem o percevejo de
cama. E é de presumir que o escravo africano, principalmente o de origem maometana,
muitas vezes experimentasse verdadeira repugnância pelos hábitos menos asseados
dos senhores brancos". (FREYRE, 2003).
A narrativa
revelava a extrema precariedade sanitária que prevalecia no Rio de Janeiro
Imperial. "O Rio de Janeiro da
infância e juventude de Machado de Assis era uma cidade de cerca de 300.000
habitantes, em grande parte de negros e mestiços ainda escravos ou forros, em que
tantas belezas naturais e o surto do progresso da cidade contrastavam com as
suas deficiências, falta de higiene, insalubridade, precariedade de meios de
transporte e o tratamento aviltante que era dado de modo geral aos escravos,
mais ainda aos submetidos aos castigos físicos e morais". (SILVA, 2014).
As
enormes dificuldades encaradas pelos negros no Brasil Imperial eram
escancaradas. Os negros escravos eram desprezados e reputados como utensílios
descartáveis pela elite senhorial da época.
A demora para a emancipação e alcançarem a liberdade mesmo diante das
leis que serviam a tal fim, principalmente em face da sensível pressão exercida
pela Inglaterra que se iniciou em 1826, através de um tratado internacional.
Mesmo
com o fim oficial do tráfico negreiro em 1850 e com a sucessão de leis que
abrandavam a situação dos escravizados e seus descendentes, tais como a Lei
Eusébio de Queiroz (1850), a Lei do Ventre Livre (1871), a Lei dos Sexagenários
(1885) a escravidão durou oficialmente até 1888, quando a Lei Áurea. Não
obstante tantas críticas dirigidas à abolição, é inegável destacar que fora
resultante de processo e culminância oficial da emancipação do negro.
A luta
pela emancipação e libertação nem foi uma presença marcante nas ações dos
escravizados e seus descendentes. As lutas, as rebeliões e os quilombolas,
foram respostas enfáticas ao regime da escravidão. E, em todas as lutas, o
corpo negro regulado pela escravidão se mostrava rebelde e lutava ciosamente
pela sua emancipação.
A Lei
Áurea promulgada em 1888 pela Princesa Isabel foi a mais importante dentre as
demais, pois libertou os negros do jugo da escravidão. E, grandes problemas
surgiram no pós-abolição pois não havia planejamento para integrá-los na
sociedade. O que representou um progresso, deixou também muitos problemas, pois
não considerou a inclusão do negro, como cidadão na sociedade brasileira da
época[5].
E, o
negro ficou relegado às atividades marginais, ao subemprego, sendo vítima até
hoje de pesado preconceito e sem oportunidade de acesso à escola. Mesmo o
racismo seja crime, ainda assim, há veemente cometimento em plena
contemporaneidade.
A Lei
Áurea (Lei nº 3.353), foi sancionada pela Princesa Dona Isabel, filha de Dom
Pedro II, no dia 13 de maio de 1888. A lei concedeu liberdade total aos
escravos que ainda existiam no Brasil, um pouco mais de 700 mil, abolindo a
escravidão no país. No âmbito regional, em junho de 2015, os ministros do
Mercosul aprovaram Declaração Contra o Tráfico de Pessoas e o Trabalho Escravo,
pela qual os países-membros se comprometeram a implementar políticas regionais para
prevenção, combate e reinserção das vítimas desses crimes no mercado de trabalho.
Destaque-se
que Machado de Assis fora testemunha e observador de tais questões históricas
de seu tempo, pois sua posição e cargos a serviço do Imperador não o pouparam
de enfrentar um grande inimigo, o racismo estrutural.
A
escritora Grada Kilomba (2019), em seu livro “Memórias da Plantação - Episódios
de Racismo Cotidiano” concebe uma definição sobre o que seria o racismo
estrutural:
“O
racismo é revelado em um nível estrutural, pois pessoas negras e People of
color estão excluídas da maioria das estruturas sociais e políticas. Estruturas
oficiais operam de uma maneira que privilegia manifestadamente seus sujeitos
brancos, colocando membros de outros grupos racializados em uma desvantagem
visível, fora das estruturas dominantes. Isso é chamado racismo estrutural”. (KILOMBA,2019).
Ao
investigar o racismo no Brasil, no recorte temporal em questão, nos deparamos
com uma das causas que, foi a grande influência da presença de teorias
científicas muito complexas que chegavam da Europa, via cientistas
estrangeiros, cujo objetivo era segregar as pessoas pela sua tonalidade de
pele, mostrando, desse modo, qual raça era superior, no caso, a branca
“ariana”. Essas ideologias raciais, de certa forma, influenciaram alguns
letrados brasileiros.
A Lei
7.716/1989, conhecida como Lei do Racismo, pune todo tipo de discriminação ou
preconceito, seja de origem, raça, sexo, cor, idade. Em seu artigo 3º, a lei
prevê como conduta ilícita o ato de impedir ou dificultar que alguém tenha
acesso a cargo público ou seja promovido, tendo como motivação o preconceito ou
discriminação. Por exemplo, não deixar que uma pessoa assuma determinado cargo
por conta de raça ou gênero. A pena prevista é de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de
reclusão.
A lei
também veda que empresas privadas neguem emprego por razão de preconceito. Esse
crime está previsto no artigo 4o. da mesma lei, com mesma previsão de pena.
Desde
12 de janeiro de 2023, com a sanção da Lei 14.532, a prática de injúria racial
passou a ser expressamente uma modalidade do crime de racismo, tratada de
acordo com o previsto na Lei 7.716/1989. Até então, a injúria racial estava
prevista apenas no Código Penal, com penas mais brandas e algumas
possibilidades que agora deixam de existir.
A
mudança foi importante por reconhecer que a injúria racial também consiste em
ato de discriminação por raça, cor ou origem que tem como finalidade, a partir
de uma ofensa, impor humilhação a alguém. A alteração legislativa acompanha
recentes entendimentos dos Tribunais Superiores que já vinham afirmando que o
crime de injúria racial não prescreve e que poderiam ser enquadrados como
racismo.
Cabe
citar a jurisprudência abaixo:
Comete
o crime de injúria racial aquele que, imbuído do ânimo de ofender a honra
subjetiva de determinada pessoa, insulta-a com palavras preconceituosas
relacionadas à sua cor, raça, etnia ou origem. Para a caracterização desse
crime, deve estar presente o elemento subjetivo do tipo penal (dolo), ou seja,
o animus injuriandi, que consiste na intenção do agente de atingir a
honra subjetiva da vítima, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro.
1.1. In
casu, restou demonstrado que o réu agiu de forma livre e consciente com a
vontade de ultrajar a vítima em virtude de sua cor/raça, movido por sentimento
racista. Assim, estando presente o dolo específico de aviltar a honra subjetiva
da vítima, deve o ofensor responder pelo crime tipificado no art. 2º-A da Lei
n. 7.716/1989.” Acórdão 1845467, 07070531120228070014, Relator(a): SANDOVAL
OLIVEIRA, 3ª Turma Criminal, data de julgamento: 11/4/2024, publicado no PJe:
18/4/2024.
Prática
de injúria motivada pela orientação sexual ou de gênero – possibilidade de
tipificação da conduta como injúria racial.
“1.
Não há falar nulidade por violação ao princípio da reserva legal/taxatividade
aos crimes de injúria racial e discriminação por questão de gênero praticados
em janeiro de 2023, antes do julgamento dos ED no MI 4733, de 11/09/2023.
Consoante entendimento da ADO 26 STF, em consonância com os referidos ED no MI
4733, aplica-se, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a
Lei nº 7.716/89 à discriminação por orientação sexual ou identidade de
gênero. 2. Comete crime de injúria
racial aquele que, imbuído do ânimo de ofender a honra subjetiva de determinada
pessoa, insulta-a com palavras preconceituosas relacionadas à sua cor, raça,
etnia ou origem, bem como orientação sexual, 1.1. Para a caracterização desse
crime, deve estar presente o elemento subjetivo do tipo penal (dolo), ou seja,
o animus injuriandi, que consiste na intenção do agente de atingir a
honra subjetiva da vítima, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. 1.2. No
presente caso, restou demonstrado que o réu agiu de forma livre e consciente
com a vontade de ofender a vítima em virtude de sua orientação sexual. Assim,
estando presente o dolo específico de aviltar a honra subjetiva da vítima, além
de discriminar a ofendida por questão de gênero, deve o ofensor responder pelos
crimes tipificados nos artigos 2º-A e 20, caput, da Lei 7.716/89.” Acórdão
1849735, 07037153420238070001, Relator(a): SANDOVAL OLIVEIRA, 3ª Turma
Criminal, data de julgamento: 18/4/2024, publicado no PJe: 29/4/2024.
Discriminação
por identidade de gênero e orientação sexual – configuração de crime de injúria
racial
“3. O
crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua
caracterização como uma das espécies de racismo e por ser espécie do gênero
racismo, o crime de injúria racial é imprescritível. Precedentes. Entendimento
positivado pela Lei 14.532/2023. 4. Tendo em vista que a injúria racial
constitui uma espécie do crime de racismo, e que a discriminação por identidade
de gênero e orientação sexual configura racismo por raça, a prática da
homotransfobia pode configurar crime de injúria racial.” MI
4733 ED, Relator Ministro EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, data do julgamento
22/8/2023, publicação: 11/9/2023.
Lilia
Moritz Schwarcz em seus estudos sobre raça tece apontamentos sobre tal questão,
in verbis:
“(...)
no início do século XIX, o termo raça foi amplamente introduzido na literatura mais
especializada por Georges Cuvier (1769-1832) quando mostrou as diferenças
existentes entre os vários grupos humanos. Surge neste período também, um
grande embate sobre a origem da
humanidade, entre dois pensamentos antagônicos, de um lado estava o
monogenismo, pensamento este baseado nos
estudos bíblicos e na crença de um pai universal (Adão), onde o homem teria se originado de uma fonte comum,
portanto a humanidade seria uma, sendo assim,
os diferentes tipos de homem eram produto da maior degeneração ou perfeição do Éden, indo do mais perfeito ao menos perfeito,
com uma maior ou menor aproximação do paraíso.
E do poligenismo, que surge para contestar os dogmas monogenistas da igreja, e fortalecer
uma interpretação biológica na análise do comportamento humano, que passam a ser
vistos como resultado das leis biológicas e naturais.
Surgindo
daí duas teorias para a interpretação da capacidade humana, a frenologia e a
antropometria, levando em conta o tamanho e a proporção do cérebro de
diferentes povos”. (SCHWARCZ apud Silva, 2010)[6].
O “homo
sapiens" tem um cérebro desproporcionalmente grande em relação aos de
outros animais. Os "sapiens" modernos são dotados de um
cérebro com dimensões de 1200 a 1400 centímetros cúbicos, enquanto outros
mamíferos que pesam cerca de 60 kg têm cérebros com tamanhos médios de 200 cm3.
Ainda
em seu artigo: “A teoria das raças disserta sobre o olhar científico no que
tange aos conceitos preestabelecidos por cientistas sobre as etnias. De acordo
com a historiadora, a partir da produção “A origem das espécies”, de Darwin
“surge uma grande inquietação nos intelectuais não somente pela grande
descoberta da pesquisa, mas também pelo uso das terminologias: “sobrevivência do
mais apto”, “adaptação” e “luta pela sobrevivência”, que o estudo de Darwin
possibilitava”.
Na
segunda metade do século XIX, chegaram ao Brasil diversas teorias raciais,
também chamadas de darwinismo racial, que diziam que havia diferenças inatas
entre brancos e não-brancos, inclusive do ponto de vista biológico. Essas
teorias eram predominantes nas ciências sociais, na biologia e na medicina,
servindo de base para a eugenia, que defendia a separação e o isolamento das
populações, estimulando a reprodução da branca, tida como superior, e buscando
o extermínio da negra e da indígena, consideradas inferiores.
O
escritor Eduardo de Assis Duarte (2009) em seu livro “Machado de Assis Afrodescendente”
dialoga sobre o pensamento de parte dessa elite - predominante na época -
através da linha de raciocínio de um nobre “(...) O Conde Arthur Gobineau[7] era representante
diplomático do governo francês no Brasil, residiu na corte à época de Machado e
se tornou amigo de D. Pedro II” (DUARTE, 2009).
Segundo
Duarte (2009), Gobineau defendia a vertente científica do etnocentrismo, pregava
a superioridade da raça branca, ocidental e cristã. (DUARTE, 2009). É inegável a
postura racista do francês “Trata-se de uma população totalmente mulata,
viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia" (GOBINEAU apud
in: Raeders apud Schwarcz ,1994)
De
acordo com Schwarcz (1994), o tema da mestiçagem, ou seja, a mesclagem da raça branca,
negra e indígena, como emblema da nação, era um fator que estava eclodindo no
país nos mais variados pilares da sociedade.
O apontamento de Munanga sobre o interesse dos
intelectuais do século XIX, em estabelecer um pertencimento étnico, uma
identidade que fosse propriamente brasileira e um ideal de nação o antropólogo
cita os literatos que se lançaram nessa construção identitária.
Segundo
a pesquisadora Dalva Aparecida Marques Silva (2010), em suma, os negros, escravos
e africanos, pelo olhar científico, eram considerados inferiores:
Os
negros, escravos e africanos passaram a ser “objetos de sciencia”, se tornaram
“classes perigosas”, sendo definido pela ciência como diferentes e inferiores,
pois era a partir da ciência que se estabeleciam as diferenças e as
inferioridades. Foi neste contexto de transição do trabalho escravo para o
livre que as teorias raciais desenvolvidas na Europa começaram a penetrar no
pensamento social brasileiro. Surgindo assim, o racismo como construção social baseado
nos pressupostos científicos. (SILVA, 2010)
Esse
preconceito racial, o qual reverbera a partir dessas teorias raciais
eurocêntricas elencadas, se encontra enraizado na cultura brasileira, e por
consequência, acaba por transparecer na ficção literária do país que coloca
tanto o sujeito negro escritor quanto o personagem negro em segundo plano.
Percebemos que, ocorre um certo apagamento tanto da imagem, quanto dos escritos
de autores negros do cânone literário.
Os
olhares estrangeiros são os pioneiros na verificação dos traços da presença
negra na literatura brasileira, essas pesquisas realizadas por eles, tendem a demostrar
com mais precisão a ausência no âmbito literário do negro na ficção.
Existe um certo preconceito com a personagem
negra, levando-a a ocupar tanto na prosa quanto na poesia - um segundo plano
“marginalizado” e, devido a esse fator, a personagem passa pelo processo de
objetificação sendo quase que desumanizada.
Otávio
Ianni pontua que para pertencer a “literatura negra”[8] o autor deve ser negro e
escrever sobre a sua raça. Nesse ponto, muitos desconsideram Machado de Assis,
pela imparcialidade. De acordo com Ianni, para se fazer a descoberta da
presença do negro na produção literária de Assis, é necessário romper “o mapeamento
demográfico”, “racial”, “sociológico” ou “ideológico” (1988).
"É
provável que Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto sejam os fundadores da
literatura negra. Sem prejuízo da sua importância na literatura brasileira.
Mas, também é provável que o resgate desses autores pela literatura negra
permita repensá-los melhor, descobrir dimensões novas em suas obras,
redimensioná-los no âmbito da literatura brasileira.
Certamente
contribuem decisivamente para a formação da literatura negra, enquanto tema e sistema".
(IANNI, 1988).
Ao ler
com muita atenção os textos de Machado de Assis, os quais possuem em seus corpus
textuais o personagem negro, é que mesmo esses personagens sendo secundários,
eles ganham falas expressivas e uma certa notoriedade e funções primordiais
para o desfecho dos escritos.
Desse modo, desvenda, não somente os males da
escravidão, bem como as faces de um país patriarcal que construiu suas bases
por cima de muito sangue de negros, indígenas e mulatos, em uma ironia muito
velada, Assis, oferece uma amostra do que presenciava. Levando em consideração
todo esse processo político-econômico-social que analisamos, compreendemos que
Machado
contribuiu muito para o hall de autoria negra, como sujeito negro
escritor e com sua pena da galhofa e tinta da melancolia desenhou as mazelas e
dores dos menos abastados.
Por
não ter um posicionamento que fosse expositivo, ainda há quem diga que Machado de
Assis era alheio às penúrias que os brancos mais abastados cometiam em seu país
contra os escravos africanos, pois ele não executava a militância de forma
direta e combativa, como alguns autores negros de seu tempo deram exemplo: Luís
Gama, Lima Barreto[9]
etc.
Os
críticos, que apoiam sobre esse pensamento, alegam que o autor não se
pronunciava acerca do tema, sempre optando pela neutralidade e imparcialidade.
Alguns
críticos e pesquisadores se debruçaram na missão de provar que Machado se
importava, sim, com os africanos e afrodescendentes que sofriam em terras
brasileiras, e que a sua produção escrita, de certo modo, tratava de denunciar
as crueldades vividas pelos cativos. Ou seja, toda a tragédia alinhada à
escravidão e seus aparelhos de repreensão, eram formas de denunciar de forma
subjetiva os desalinhos da decadência da comunidade, da qual era membro.
Há
relatos de que Machado compareceu a algumas confraternizações em comemoração ao
fim da escravidão:
"Machado
de Assis participou de todas as comemorações de regozijo pela promulgação da
Lei Áurea. No âmbito da Secretaria da Agricultura, onde trabalhava, encarregado
de proferir saudação ao ministro conselheiro Rodrigo Augusto da Silva, autor do
projeto abolicionista apresentado à Câmara dos Deputados no dia 7 de maio, o
fez em termos calorosos, louvando a decidida atuação do Ministro no
acontecimento histórico tão justamente celebrado, mas que contrariava altos
interesses dos proprietários de escravos”.
“No
dia 17 de maio, assistiu à missa comemorativa da abolição com a presença da
Princesa Isabel, homenageada por todos os presentes, e logo após participou do
almoço com que em sua casa o tribuno José de Patrocínio o recebeu juntamente
com o ministro da justiça, Ferreira Viana”.
“No
dia 20, participou, em carruagem aberta, do grande cortejo cívico organizado
pela imprensa do Rio de Janeiro, vendo entre os presentes o Marechal Deodoro da
Fonseca, representante da facção do Exército que assinara antes um manifesto
abolicionista". (SILVA, 2014).
Ainda
sobre o ponto de vista de Machado de Assis quanto à questão dos escravos negros
e mestiços no Brasil no século XIX, Silva (2014) discorre sobre como Machado
deveria se sentir, sendo ele também um mestiço.
Machado
de Assis escreveu uma enorme coletânea de crônicas que trazem em seus eixos centrais
conteúdos que fazem alusão ao entrecruzamento de momentos históricos, como, por
exemplo, a queda do Império (1881-1849) e início da República no Brasil (1889).
A
crônica que data de 14 de maio de 1893 versa a respeito da Lei Áurea de 1888, e
de como foi importante esse grande feito para os escravos. Conta também sobre o
júbilo que foi para os abolicionistas presentes, na ocasião.
Mesmo
que Machado não tenha sido um dos maiores ativistas abolicionistas do século
XIX, isso não significa que ele apoiasse a escravatura, tampouco que tenha
aderido à ideologia do embranquecimento, como alguns pesquisadores cogitam.
Nessa
correspondência de Machado para Joaquim Nabuco, que data de 30 de setembro de 1905,
percebemos a enorme afetuosidade que o prosador sentia por seu grande amigo:
“Quando
cá vier tomar um banho de pátria, será recebido nela como merece de todos nós que
lhe queremos. Adeus, meu caro Nabuco, continue a lembrar de mim onde quer que o
nosso lustre nacional peça a sua presença. Eu não esqueço o amigo a quem vi
adolescente, e de quem ainda agora achei uma carta que me avisava o dia em que
deveria fundar a Sociedade Abolicionista, na rua Princesa. Vinte e tantos anos!
Era o princípio da campanha vencida pouco depois com tanta glória e tão
pacificamente”. (MACHADO apud JÚNIOR, 1957).
Fica
claro, nessa correspondência, que havia diálogos entre os dois sobre a
emancipação dos escravos, tendo em vista que seu parceiro era a favor do fim do
tráfico de negros e da exploração dessa mão de obra.
A
pesquisadora Elisângela Aparecida Lopes (2007), em sua tese que tem por título “Homem
de seu tempo e de seu país - senhores escravos e libertos” nos escritos de
Machado de Assis discorre sobre a injustiça que o cronista sofre, no que diz
respeito à presença do tema da escravidão, e seus desdobramentos em suas
narrativas. Muitos dos críticos e biógrafos, ao acusarem Machado de
absenteísmo, não pesquisaram seu acervo de obras a fundo.
Nesse
sentido, o jornalista concluiu:
“Se
Machado de Assis tem sido frequentemente acusado de não ter participado dos grandes
acontecimentos do seu tempo, é que, dentre os que tais coisas dele dizem, uns
não tiveram paciência para pesquisar-lhe minunciosamente a vida e a obra,
outros não o estimavam e outros ainda, porque, à falta de ideias próprias, não
fazem mais que repetir mecanicamente os primeiros. Criou-se, assim, uma imagem
deformada de Machado de Assis, tão deformada que, em verdade, o eminente
escritor assumiria, aos nossos olhos, um aspecto monstruoso, talvez mesmo
odiento, se realmente fosse como o pintam”. (JÚNIOR, 1957).
Em
suma, Machado de Assis prova, através de sua impecável postura como cidadão brasileiro
e escritor excepcional, que ser mulato não limitava sua intelectualidade em
nada, e seu ativismo ficou registrado em suas obras.
Existem historiadores, críticos literários e
sociólogos que, se lançaram a esmiuçar essa questão, e um dos mais notáveis é o
sociólogo Raymundo Faoro, que se propôs a examinar as agruras sociais à época
de Assis juntamente com suas obras, na produção intitulada Machado de Assis: a
pirâmide e o trapézio de 1976.
De
acordo com a pesquisadora Mariana da Silva Lima: “Nesse livro, Raymundo Faoro
interpretou de maneira original e abrangente as relações entre a obra de
Machado de Assis e fatos essenciais da história brasileira. Comentando a tradição
crítica de análise histórica da obra de Machado”. (LIMA,2012).
Nesse
texto, o sociólogo se propõe a apurar a tecitura do diálogo estabelecido entre
as obras de Assis, no viés literário, e os acontecimentos históricos, se
espelhando em conceitos de sua obra consagrada “Os donos do poder".
Destacou
Alfredo Bosi sobre tal dualismo, in litteris:
“Na
perspectiva de Raymundo Faoro, o narrador Machado de Assis representa, na
esfera dos indivíduos, as marchas e contramarchas dos interesses e dos desejos
de poder no nível micro social: entre homem e mulher, entre irmãos, entre
amigos, entre famílias.
Em
outras palavras: a literatura, como mimesis
do real, trabalha com o singular, ao passo que a ciência social constrói o tipo
que enfeixa características de uma pluralidade de indivíduos. Neste sentido, Machado
de Assis: a pirâmide e o trapézio retoma e individualiza Os donos do poder.” (BOSI,
2004).
Ainda
sobre esse aspecto Bosi, afirma:
“Tomando
por assente a relação geral e constante entre romance e sociedade, pedra de toque
do realismo, Raymundo Faoro traçará o mapa da vida política e econômica do Segundo
Reinado com os olhos postos em personagens e situações machadianas”.
Um levantamento
exaustivo, de que a exposição seguinte tentará captar apenas as linhas mestras.
A construção do livro está representada com nitidez pelas duas figuras
geométricas do título: a pirâmide e o trapézio. As figuras, ora superpostas,
ora combinadas, constituem o eixo sincrônico da tese de Faoro.
São a
forma do quadro social, tal como se compôs no Segundo Reinado. A pirâmide desenha
a estrutura vertical das classes. A base larga reporta-se aos homens do
trabalho braçal: os escravos, os forros,
os pobres em geral, brancos ou mestiços. O vértice é constituído pela reduzida
classe dos proprietários, os fazendeiros, os seus comissários e os banqueiros.
O comerciante
escalona-se na parte intermediária da pirâmide e gradua-se na proporção dos seus
cabedais. A pirâmide tem a ver diretamente com a produção e o negócio. Os seus móveis
serão a acumulação, o lucro ou o consumo alto – no vértice –; a base será
prioritariamente o escravo, secundariamente o trabalhador assalariado. (BOSI,
2004).
Bosi
conclui que: Reler Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio são ser chamado a
um diálogo fecundo entre a sociologia e a hermenêutica, a explicação e a
compreensão, o quadro e o olhar, o que não desprazeria ao mestre de Raymundo
Faoro, aquele Weber que sondou, em toda a sua obra, as intrincadas relações
entre o indivíduo e a sociedade. (BOSI, 2004).
Roberto
Schwarz (2006), no livro “Ao vencedor as batatas”, 1977, que foca um olhar
atento para o “paternalismo” e a sua “racionalização” nos primeiros romances de
Assis: “A mão e a luva”, “Helena” e “Iaiá Garcia”[10]. Essa fase literária de
Machado dialoga segundo o autor com contextos sociais da época do escrito.
Cuti
(2010), ao analisar a relação “autor versus leitor” conclui que, há uma
“intenção” do autor no processo de escrita, ou seja, existe o desejo de
dialogar com um possível leitor. No fragmento abaixo o pesquisador disserta
acerca dessa questão:
“Quando
alguém se põe a escrever, não é verdade que escreve para si mesmo. Já no ato da
escrita, um leitor ideal vai se formando na mente do escritor, alguém que ele gostaria,
intimamente, que lesse o seu texto.
As
costumeiras dedicatórias são a revelação da ponta do iceberg deste leitor
concebido no ato da própria escrita, sem que, muitas vezes, o escritor tenha
consciência. Isso ocorre porque, ainda que o ato da escrita seja solitário, na
maioria das vezes ele enseja o princípio de um grupo: o autor e o leitor. É um
ato de comunicação. (CUTI, 2010). coteja os romances da fase de maturidade de
Machado “Casa velha” (1885), “Quincas Borba “(1891), “Esaú e Jacó” (1904) e “Memorial
de Aires” (1908), bem como crônicas da série “Bons dias!”.[11]
De acordo com Nicolau Sevcenko, Gledson aponta
para um recurso utilizado por Assis, denominado “realismo enganoso". E, o
ponto de vista do próprio Chalhoub, o pesquisador Adelto Gonçalves, afirma que
“(…) Chalhoub traça um perfil da
hipócrita elite brasileira que se estabeleceu apoiada sobre o braço do escravo,
reproduzindo alguns hilariantes discursos ou diálogos travados no Parlamento a
uma época em que o Brasil dava ao mundo o triste espetáculo de representar o
último baluarte da escravidão.”
Observamos
através dos estudos dos importantes teóricos a comprovação da presença da
história do Brasil na literatura Machadiana, para além do retrato da
escravidão. Notamos também todo o aporte do sistema patriarcal, o qual dividia
a elite senhorial dos escravos - embutidos nos personagens criados pelo
romancista - nos romances, nas crônicas e nos demais gêneros que o cronista se
propôs a escrever.
Entendemos
com isso, que, Assis retratou os mais distintos níveis da sociedade do tempo
imperial ao início da república. Dados os fatos, se torna tendencioso o argumento
de que não houve a contribuição de fatores externos na escrita de Assis, ou que
o autor foi alheio as questões de sua época, se é algo que paira sob sua
escrita.
Pai
contra mãe[12]
Uma
casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da
tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Suppõe que o dono pense em as
arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não
raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pôde extrair uma dúzia
dellas que mereçam sair cá fora.
Chama-lhe
a minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e impressos que aqui
vão, ideias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados o livro e o título.
Possivelmente não terão a mesma supposta fortuna daquella dúzia de outras, nem
todas valerão a pena de sair cá fora. Depende da tua impressão, leitor amigo,
como dependerá de ti a absolvição da má escolha (ASSIS, 1906).
A
advertência, escrita pelo autor, nos deixa em alerta sobre a suposição do
porquê da seleção de alguns textos nessa obra e a metáfora implícita que tece
analogias sobre se, de fato, a casa era a vida do autor e as relíquias, seus
textos.
Há
quem diga que essa casa pode ser o Brasil e as relíquias os instrumentos do
sistema governamental. Contudo, essa é mais uma lacuna em aberto, não pontuada
por Assis. Essa produção ficcional data de 1906, último livro de contos do
bruxo do Cosme Velho[13].
“Relíquias
da Casa Velha” é uma obra fundamental na trajetória literária de Machado de
Assis, que mantém sua relevância até os dias atuais. Com sua narrativa
perspicaz, o autor oferece ao leitor uma visão crítica e irônica da sociedade
oitocentista, explorando temas atemporais e universais. [14]
A
leitura desta obra é uma oportunidade para compreender não apenas o contexto
histórico em que foi produzida, mas também para refletir sobre as relações
humanas e as contradições da sociedade, em uma narrativa que permanece atual e
instigante.
Entendendo
que essa é uma obra que pertence à fase madura do literato, como a própria
ressalva diz, temos o prosador decidindo expor as relíquias da casa velha.
O conto “Pai Contra Mãe” é um clássico
machadiano que tem arrebatado muitos leitores ao desenlaçar dos séculos, devido
às várias questões inerentes ao caráter humano, muito bem pontuadas pelo autor
nessa narrativa. Ou, até mesmo, por várias lacunas enigmáticas deixadas em
aberto para interpretação pessoal do público, de forma atemporal.
O foco
na desarrumação das classes sociais do Brasil não poderia faltar em uma boa
obra do autor de Dom Casmurro, resultando, quase sempre, na relação de seus
personagens que simbolizam homem versus sociedade, em comunhão com os
sentimentos “bons” ou “maus” que afloram os desejos, algo muito comum para
humanidade.
Nesse
sentido, as criações machadianas são elementares e singulares, em seu fazer
estético e funções dentro do corpus textual. O autor Antônio Candido de Melo e
Souza, em seu livro A personagem, apura a tecitura que faz parte do processo de
construção dos personagens e características dos mesmos, expondo as obras de
uma diversidade de autores e demarcando as linearidades. Porém, quando se
reporta a Assis, o crítico nota uma particularidade nos personagens criados à
base da verossimilhança.
Machado
de Assis é muito famoso por confundir seus leitores por meio das
particularidades retratadas das personalidades de seus personagens que, como
mencionado por Candido, são criações que são afetadas pela crueza da realidade.
Nesses moldes, direcionando o olhar para a figuração do negro na ficção, como
personagem na literatura brasileira, Eduardo Duarte, em seu artigo “O negro na
literatura brasileira”.
O
dilema enfrentado por Cândido Neves, o personagem central de "Pai Contra
Mãe", é a escolha entre capturar uma escrava fugitiva para obter dinheiro
e sustentar seu filho recém-nascido, ou seguir sua consciência e evitar causar
mais sofrimento humano, especialmente à escrava grávida que ele captura.
A presença do personagem negro, nos deparamos
com uma grande escassez de escritores que escreveram sobre o tema ou deram voz
e protagonismo à figura do negro como personagem, ou seja, como se fosse um
apagamento de um pertencimento étnico, que é fruto da mestiçagem brasileira. Os
estudos na área ainda são pouquíssimos. Duarte, compreendendo essas rupturas no
seio da literatura, relata essas desproporções:
No
arquivo da literatura brasileira construído pelos manuais canônicos, a presença
do negro mostra-se rarefeita e opaca, com poucos personagens, versos, cenas ou
histórias fixadas no repertório literário nacional e presente na memória de
leitores. Sendo o Brasil uma nação multiétnica de maioria afrodescendente, tal
fato não deixa de intrigar e suscitar hipóteses em busca de seus contornos e
motivações (DUARTE, 2013).
O
professor Domício Proença Júnior Filho, efetiva uma imersão nos estudos do
trajeto da figura do negro na ficção brasileira, com uma bifurcação que estuda
o negro como “objeto”, no caso, como personagem, e o “negro como sujeito”, no
sentido autoral (FILHO, 2004).
O que
Domício inspeciona são as produções escritas afro-brasileiras no decorrer dos
séculos. Um fato importante é que ele nota o mesmo apagamento exposto por
Duarte, ou seja, a falta da pluralidade da temática afro-brasileira no panorama
literário, que, quando citada, quase sempre está inserida em conceitos voltados
para a depreciação.
A
presença do negro na literatura brasileira não escapa ao tratamento
marginalizador que, desde as instâncias fundadoras, marca a etnia no processo
de construção da nossa sociedade.
Evidenciam-se
na sua trajetória no discurso literário nacional, dois posicionamentos: a
condição negra objeto, numa visão distanciada, e o negro como sujeito, numa
atitude compromissada (FILHO, 2004).
Duarte
compreende que essa carência da valorização do personagem negro se faz por
causa de um “mecanismo sociológico”, que entende a arte como um revérbero do
contexto histórico-social brasileiro (2013).
Ou
seja, essa hipótese se apoia no fato de historicamente os negros africanos
serem trazidos de seus respectivos países para o serviço escravo e não serem
observados pelo colonizador como semelhantes, porém, como peça de uma máquina
de produção para gerar lucros.
Essas
reverberações da sociedade patriarcal se coligam à ideologia do
“Eurocentrismo”, que se fez presente no Brasil por muito tempo, essa miscelânea
de ideias que apontava para “O branco Europeu” como centro, corroborando de
modo a negativar a imagem do negro.
Compreendendo
esses apontamentos, observamos que o texto em questão traz, em seu eixo
principal, a escravidão em primeiro plano, com todos os aparatos provenientes
dessa forma governamental. Segundo Duarte, em “Pai contra mãe”, “A escravidão”
é tratada em seu âmago, vista enquanto relação sobretudo agonística em seus
diversos aspectos” (2009).
Notamos a presença da ironia nesses primeiros
parágrafos, elucidando pontos específicos da narrativa, tornando-a subjetiva, à
medida da propagação da leitura. Tratando especificamente do texto machadiano,
Antônio Candido, no livro “Esquema de Machado de Assis”, disserta sobre a
narrativa machadiana sob o vértice do recurso da ironia “[...] E o mais picante
é o estilo guindado, é algo precioso com que trabalha, e que, se de um lado
pode parecer academicismo, de outro, sem dúvida, parece uma forma sutil de negaceio,
como se o narrador estivesse rindo um pouco do leitor” (2008).
Ainda
que de forma sútil, Machado promove um diálogo com a história do Brasil Império
e a gestão escravocrata. Podemos compreender esse fato quando o contista elenca
os instrumentos de tortura, comum ao sistema patriarcal, nas primeiras linhas
do conto.
O
narrador onisciente relata o quão medonhos eram esses aparelhos de punição,
pois os escravos eram penalizados com esses instrumentos, caso desafiassem ou
se insubordinassem às ordens de seu dono.
Machado
concede às suas personagens negras a possibilidade do diálogo, ainda que seja para
exprimir suas dores e seus fracassos. O autor, através dessa exposição, permite
que as mulheres negras representadas em suas obras exerçam sua humanidade, tão
negada pelos senhores da casa grande.
Sobre
a presença da mulher negra na ficção de Assis, Duarte afirma:
“Os
dramas machadianos referem-se a mulheres tratadas como objetos sexuais que, no entanto,
ascendem a condição de sujeitos de suas vidas, nem que seja para buscar o
suicídio. E abordam também a forma como o desprezo dos senhores e seus
herdeiros é despejado sobre as ilusões das jovens escravizadas” (DUARTE, 2009).
Montaigne
explica pelo seu modo delle a variedade d’este livro. Não há que repetir a
mesma ideia, nem qualquer outro lhe daria a graça da expressão que vae por
epigraphe. O que importa unicamente é dizer a origem destas páginas. Umas são
contos e novellas, figuras que vi ou imaginei, ou simples ideias que me deu na
cabeça reduzir a linguagem.
Saíram
primeiro nas folhas volantes do jornalismo, em data diversa, e foram escolhidas
d’entre muitas, por achar que ainda agora possam interessar. Tambem vae aqui Tu
só, tu, puro amor... comedia escripta para as festas centenarias de Camões, e
representada por essa occasião. Tiraram-se della cem exemplares numerados que
se distribuiram por algumas estantes e bibliothecas.
Uma
analyse da correspondencia de Renan com sua irmã Henriqueta, e um debuxo do nosso
antigo senado foram dados na Revista Brazileira, tão brilhantemente dirigida
pelo meu
illustre
e prezado amigo José Verissimo. Sae também um pequeno discurso, lido quando se lançou
a primeira pedra da estátua de Alencar. Emfim, alguns retalhos de cinco anos de
crônica na Gazeta de Notícias que me pareceram não destoar do livro, seja
porque o objecto não passasse inteiramente, seja porque o aspecto que lhe achei
ainda agora me fale ao espirito. Tudo é
pretexto para recolher folhas amigas (ASSIS, 1899).
Com
esse prefácio muito instigante, Machado de Assis abre a coletânea intitulada “Páginas
Recolhidas”, que foi lançada em 1899, publicada por B.L Garnier. Podemos, de
imediato, apontar um diferencial: essa junção de textos é o primeiro livro de
miscelânea do contista, as narrativas dessa seleção apresentam uma vasta
variedade de gênero, porém, foi muito pouco comentado pela crítica.
José
Veríssimo é um dos poucos críticos que comentaram sobre essas Páginas
Recolhidas, e seu olhar sobre o estilo apresentado.
O tema
da escravidão surge nas linhas do conto “O caso da vara”, que traz em seu
próprio título a citação de um instrumento de repreensão, que é a vara, fazendo
uma referência ao próprio assunto do texto, que vai perpassar o sistema
escravocrata.
Fomentando
mais ainda essa correlação dos fatos, no primeiro parágrafo é apontado que os
acontecimentos tinham data anterior ao ano de 1850, hipótese essa que nos
direciona a uma inspeção nos registros históricos do Brasil, que na época
citada era regido pelo Imperador Dom Pedro II de maneira monárquica.
No
início do escrito, o narrador nos apresenta Damião, que é o personagem
principal, e percebemos, através da exposição da história, que o mesmo passa
por uma situação muito difícil. Logo após desistir do seminário, opta por se
esconder na casa da Sinhá Rita, que é amante de seu padrinho, a fim de que ela interceda
para livrá-lo de ser padre.
Na
casa de sua intercessora, Damião tece estratégias para se livrar de vez do seminário,
devido ao medo de ir à casa do seu pai e ser castigado e forçado a retornar à
igreja. O personagem faz da casa de Sinhá Rita o seu refúgio. Porém, ao
desenlaçar das horas, começou a se distrair com a dona da casa e suas criadas
que bordavam.
A
pequena Lucrécia, de apenas 11(onze) anos, cria da Sinhá, parou o serviço para
rir de uma anedota contada pelo rapaz e foi automaticamente repreendida pela sua
senhora, como aparece nesse recorte: “– Lucrecia, olha a vara! A pequena
abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência;
se à noitinha a tarefa não estivesse prompt, Lucrecia receberia o
castigo do costume” (ASSIS, 1899).
Essa
atitude contra a pobre escrava torna-se um recurso do autor para revelar como
era comum e severo o trabalho escravo infantil, pois as crianças negras
escravizadas perdiam toda sua infância, presa aos grilhões da escravidão. A respeito
desse pensamento, Duarte afirma:
Porém,
as marcas da tortura não deixam de caracterizar como sádico o rigor imperial da
sinhá, nem de realçar a dureza das condições de vida e de trabalho da criança
escrava. Este surge nomeada pelos signos de apequenamento e fragilidade do
físico, que convivem, entretanto, com a leveza de espírito que a faz rir e se
divertir com a situação do jovem e com as anedotas que ouvem (DUARTE, 2009).
Vendo
a situação da pequena escrava, o moço sente compaixão pela menina e decide ser
o padrinho dela. Isso porque ele percebeu que a criança não tinha culpa por
apenas sorrir de uma piada contada por ele. Pensou consigo que, caso ela não
terminasse a tarefa, ele a defenderia (ASSIS, 1899).
Desse
modo, percebemos que o lado humano de Damião aflora, com o sentimento de piedade
pela pequena menina, não a vendo como um utensílio, mas como ser humano.
Percebemos
que o jovem rapaz apela para Sinhá Rita, para que ela faça uma ponte de
comunicação que se estenda entre ele, o padrinho João Carneiro e seu pai, sustentando
o fio da esperança, para que a questão do seminário fosse de vez sanada. Isso
para ele era algo emergencial. A madame, percebendo a fragilidade do rapaz,
decide apoiá-lo e, através de chantagens, consegue desarticular e oferecer-lhe
uma possibilidade de conseguir resolver aquele problema.
Depois do grande tempo de espera e desespero
do padre, Sinhá Rita consegue mais um dia de expectação para o pobre Damião.
Porém, ao chegar da noite, quando vai ver se as atividades atribuídas as suas
escravas estavam terminadas, tem uma surpresa, Lucrécia não havia acabado e é duramente
repreendida pela sua dona.
Nesse
diálogo, conseguimos notar a severidade na forma de falar da Sinhá “– Ah!
Malandra. – Nhanhã, nhanhã! Pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no
céu. – Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!” (ASSIS, 1899). A conversa
entre a escrava e sua proprietária ergue a completa fragilidade do negro frente
ao regime patriarcal.
“O
caso da vara: farsa e tragédia no alvorecer da república”, enxerga, na
personagem machadiana Lucrécia, um diálogo implícito com a Lucrécia de Roma,
descrita no poema com o título “The Rape of Lucrece” (1594), do autor inglês
William Shakespeare. Pois, na romana, ele notou a representação da transição,
em um momento político, de uma forma de governo para outra, algo que o
estudioso insinua que tenha acontecido, ainda que com menos intensidade, no
conto brasileiro, demarcando também a passagem da monarquia para república no
Brasil, ainda que distintos em diversos aspectos, inclusive temporal. resta a
Damião escolher entre duas opções, e esse momento de reflexão cria uma certa
tensão no enredo.
As
opções que o personagem central tem são: não dar a vara que Sinhá Rita está lhe
solicitando e correr os riscos das consequências após o ato ou dar a vara a sua
benfeitora e romper com a promessa que ele fez para si próprio de salvar a
inocente criança. Por fim, ele escolhe salvar-se. Percebemos, nesse trecho, o
fechar de olhos do ex-seminarista, para a situação.
“Damião
sentiu-se compungido; mas elle precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa,
pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita” (ASSIS,1899).
Resta
evidente a contradição de desejos do rapaz que, pela moral, se apieda, mas, pelo
individualismo, entrega o outro ao castigo. Investigando esse veio, a
pesquisadora Mailde Jerônimo Trípoli, em sua tese “Imagens, máscaras e mitos –
O negro na literatura brasileira no tempo de Machado de Assis”, relata que
reside nessa configuração uma pista de Assis, que abre uma lacuna para o
questionamento da dialética da colonização.
Em
2016, foi publicado o livro “Machado de Assis lido e relido”, sob organização
de João Cezar de Castro Rocha. Em meio a muitos artigos selecionados pelo
organizador, encontra-se um texto do pesquisador José Luiz Jobim com o título
“Machado de Assis e o nacionalismo: o caso das Americanas”, que desdobra muitos
paradigmas sobre o fazer estético, que giram entorno de Americanas.
E
desmistifica, através das argumentações estendidas ao longo do texto, o principal
ponto de tensão, o indianismo, pois, de acordo com ele, Machado retoma essa
tradição cultural que faz parte da raiz do nacionalismo na literatura
brasileira (2016).
Segundo
Jobim, “As americanas são um legítimo descendente do Indianismo, esta vertente
do Romantismo que até hoje é vista como exemplo destacado do nacionalismo
romântico no Brasil” (JOBIM apud ROCHA, 2016).
O
jornalista José Veríssimo discorreu, com muita delicadeza, sobre o não
aprisionamento de Machado a uma determinada tradição literária, porém ressalta
que o mesmo soube fazer pontes com ambas as tradições. Nesse fragmento, o
pesquisador insere:
Como
poeta, não foi propriamente romântico, nem propriamente parnasiano, nem propriamente
naturalista, e foi simultaneamente tudo isto junto. A cada tendência artística,
a cada forma estética, colheu discretamente das flores de beleza que produziram
a que se casava com o seu temperamento, ousou-lhe sobriamente o perfume,
obtendo da sua mistura um novo aroma, delicado e modesto (VERÍSSIMO, 1977).
Machado
de Assis expunha os atos mais perversos do sistema escravagista em sua ficção, levando
em consideração que os leitores de sua época, de certo modo, pertenciam à elite
da sociedade. Esse fato não o inibia, ou
seja, podemos considerar que havia um determinado público-alvo.
Sobre esse
ponto, Duarte apura:
“Ao
analisar o tratamento dado por Machado aos afrodescendentes e às reações
impostas pelo escravismo, não se pode perder de vista seu horizonte
recepcional, formado basicamente por leitores da classe dominante. Assim, ao
privilegiar a crítica da elite, o escritor está por vias transversais,
abordando a questão e tocando nas origens da grande ferida social de seu tempo”
(DUARTE, 2009).
Para
entender a polêmica que existiu entre Machado de Assis e Sylvio Romero
precisamos reconstruir o período de grandes mudanças pelo qual passou o Brasil
em 1870. E, o que inclui a fundação do Partido Republicano, a Lei do Ventre
Livre aprovada em 1871, a crescente importância dos militares após a vitória na
Guerra do Paraguai e as reformas estruturais impostas pelo Gabinete Rio Branco
e que criaram as condições que emergisse uma geração de intelectuais opostos à
ordem imperial, era a chamada Geração de 1870.
Tal
geração de intelectuais se caracterizava pela oposição à ordem saquarema (do
Partido Conservador) que vigorou de modo ininterrupto entre 1848 a 1878. A
oposição ocorria em duas frentes, em termos políticos, os componentes eram
abolicionistas e/ou republicanos e, em termos intelectuais, opunham-se aos três
pilares da ordem imperial conservadora: o catolicismo hierárquico, o indianismo
romântico que definia a nacionalidade de forma estetizada e o regime que
limitava a participação política.
O tema
opressivo do escravismo, que é um sistema que corrói o sentimento de
humanidade, ou seja, promove o apagamento da empatia pelo próximo, deixando
apenas a desumanização e a visão do semelhante, no caso o escravo, objetificado
e atrelado a lucros. Esse ato acontecia principalmente com as mulheres cativas,
que na época eram enxergadas como meros objetos de uso e descarte.
Em
suma, grande parte das obras de Machado expõe, nas características de seus personagens,
os comportamentos humanos de todos os aspectos, dos irrigados na bondade aos
enxertados na maldade, demonstrando, com certo enfoque e sem filtro, o lado
ruim do ser humano. Com isso, Assis desvela toda a miséria humana, elencadas as
atitudes dos homens no presente caso: “O senhor moço”.
Machado
de Assis é um ícone do panorama da literatura brasileira. Apesar da origem humilde
e pobre, esse fato não o impediu de ultrapassar os preconceitos existentes em
sua época, conseguindo uma posição de prestígio dentro da sociedade e
tornando-se uma exceção em seu tempo.
Portador
de uma escrita singularizada e rico em suscitar debates em sua literatura,
possui uma extensa gama de obras, divididas entre crônicas, contos, poesias,
peças teatrais e romances. Machado de Assis se tornou um escritor “intocável”
por sua postura quase perfeita perante os cidadãos brasileiros, e por ser muito
discreto em sua conduta.
Logo
na introdução, procuramos efetivar uma breve imersão especificamente na biografia
de Machado escrita pela crítica Lúcia Miguel Pereira no intuito de visualizar a
figura do mulato nascido em classe pobre desvelado pela autora. Pereira expõe
tanto a rigidez da imagem de Machado de Assis quanto a possibilidade de
desconstrução dessa imagem.
É
seguindo esse segundo caminho que ela opta por descrever seu Assis, expondo um
Machado menos conhecido pelo público, uma faceta afrodescendente, um legítimo
mestiço.
O tema
da negritude em Machado, percebemos uma bifurcação, pois em primeiro lugar
temos um autor mulato em pleno século XIX escrevendo com muita propriedade e intelectualidade,
fato que por si só desapontava as teorias racistas da época do Bruxo do Cosme
Velho.
De
outro ponto de vista, quando escreve sobre personagens negros dando voz a seus
cativos, atribui a eles a chance de ecoarem suas dores e angústias, expondo
assim toda a maldade pela qual eram acometidos devido à escravidão.
Os
textos selecionados evidenciam uma certa inquietação de Assis com as questões
de sua época.
Notamos em ambos os textos analisados que o
“homem branco” colonizador apareceu sempre dominando o negro escravo como se
fosse uma espécie de caçador. Em “Pai contra Mãe”, percebemos um caçador
egocêntrico, e sobre esse ponto Duarte afirma: “o caçador encontra sua presa:
Arminda uma mulata fujona prestes a dar à luz” (DUARTE, 2009).
No
conto, o mercenário Cândido Neves, em uma luta pela sobrevivência de seu filho,
opta por entregar a escrava fugida mesmo percebendo que ela também estava
lutando pela sobrevivência do filho que ainda estava em seu ventre.
Em “O
caso da Vara”, a imagem do caçador é suavizada porque durante quase toda a
narrativa ele demostra compaixão pelo outro, o que deixa no leitor uma falsa
impressão de que será um texto distinto dos outros com a mesma temática.
O
embate de Damião e sua luta para fugir do seminário entra em choque com o
desejo de apadrinhar uma pequena escrava, mas, no momento oportuno, ele decide
por salvar a própria vida, abrindo margem para a visualização do discurso
hipócrita da elite dominante.
Outro
assunto é a ridicularização da elite que importava um projeto de sociedade que
pudesse imitar a Europa, presente por exemplo em “Memórias Póstumas de Brás
Cubas” (1881). Também é possível encontrar críticas ferozes à escravidão e à
sua desumanização, como em Memorial de Aires [último romance de Machado,
lançado em 1908.
Trípoli
afirma ainda: “O poema, embora aparente descrever a aceitação do cativeiro,
denuncia a trágica ironia do paternalismo e as suas consequências. Uma faceta
da escravidão, muito conveniente aos senhores e, em parte, responsável pela
crença de que, no Brasil, a vida dos escravos era amena” (TRÍPOLI, 2008).
Embora
de modo ambíguo e dissimulado, Machado de Assis[15] expõe questões sociais enraizadas
na cultura brasileira. Nos seus textos, a escravidão é descrita às vezes de
forma simples, econômica e clara, outras vezes de forma devastadora.
Observamos,
portanto, o reflexo da imagem de uma país escravocrata e o resultado desse
processo ligado ao destino dos personagens principais e secundários.
Dessa
forma, embora não esteja presente em sua obra literária uma voz assumidamente
negra (ao contrário de outros escritores negros que foram seus contemporâneos,
como Luiz Gama e Cruz e Sousa[16]), Machado não aderiu ao
discurso da branquitude e não reproduziu a desumanização da população negra que
havia na época. O autor, assim, rompia o círculo perverso de reprodução de
preconceitos em relação a esse grupo.
A
literatura de Machado de Assis é conhecida e reconhecida por mergulhar de forma
crítica, complexa e aprofundada nas relações sociais do Brasil. E fez isso a
partir de uma perspectiva muito particular, pois sua produção não deixa dúvidas
de onde o autor fala: trata-se de um homem negro, de origem pobre e nascido em
uma sociedade escravocrata; e esta condição se manifesta na sua produção
literária.
Machado
de Assis partilhava, como os componentes da Geração 1870, da condição de ser um
intelectual em um país sem universidades nem outras instituições que
garantissem um meio intelectual autônomo para suas atividades. Assim, nossos
pensadores tinham poucas opções e se tornavam funcionários públicos, caso de
Machado, ou disputavam as poucas vagas nas faculdades e colégios imperiais, o
que se passou com a maioria dos integrantes da Geração 1870.
Nossos
intelectuais permaneciam em uma condição de dependência da mesma ordem social
que descreviam em seus livros, buscavam analisar e criticar. Por isso, suas
atividades se desenvolviam em condições difíceis e até contraproducentes.
Outro
legado de Machado de Assis tem a ver com sua trajetória biográfica. Machado foi
um homem negro, gago, epilético e de família humilde, nascido no Morro do
Livramento, Rio de Janeiro. Apesar de tantas barreiras, tornou-se um dos
maiores escritores brasileiros, senão, o maior escritor pátrio.[17]
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[1]
A Questão Christie foi uma crise
diplomática oriunda de uma série de acontecimentos conflituosos na área das
relações internacionais, entre os governos do Império do Brasil e do Império
Britânico, que ocorreu entre 1862 e 1865. Resolução pacífica do conflito:
Liberação dos oficiais marinheiros britânicos. A Questão Christie foi uma das
manifestações mais importantes da política externa do Império brasileiro, sob o
reinado de D. Pedro II, por estar ligada a uma série de conflitos com a
Inglaterra. Recebeu esse nome por envolver o embaixador inglês, no Rio de
Janeiro, William Douglas Christie. Houve dois fatos que desencadearam as
desavenças diplomáticas, mas o problema de fundo eram as transformações
econômicas e sociais que estavam ocorrendo no Brasil e no mundo, contando ainda
com uma pitada de sentimento nacionalista.
[2]
O chamado "parlamentarismo às avessas" foi o sistema político vigente
no Império do Brasil durante o Segundo Reinado. Esse sistema alternava na
chefia do Poder Executivo os partidos Conservador e Liberal, baseados na
escolha do Poder Moderador. Em dois momentos da história brasileira foram
utilizado o parlamentarismo na gestão do Estado. Esta forma de governo implica
na existência de um Primeiro-Ministro exercendo grandes poderes do Executivo ao
lado do presidente ou, no caso brasileiro, do imperador. A primeira vez que
esse sistema foi utilizado no Brasil refere-se ao período do Segundo Reinado no
império. Já a segunda ocasião em que foi utilizado ocorreu muito tempo depois,
durante o governo presidencial de João Goulart, ou seja, já na República. É
justamente à primeira aplicação do modelo de gestão do Estado que se dá o nome
de “Parlamentarismo às Avessas”. Depois que atingiu a maioridade e passou a
desenvolver as plenas funções do imperador, Dom Pedro II criou um Conselho de
Ministros para lhe ajudar a dirigir o Brasil. No horizonte desta ideia, estava
a influência do parlamentarismo tal como praticado na Inglaterra. Como a
orientação hierárquica dos dois parlamentarismos eram opostas, vem daí o nome
“Parlamentarismo às Avessas”. Nesse Conselho de Ministros, um indivíduo ocupava
o cargo de Presidente do Conselho de Ministros, o que seria equivalente ao
Primeiro Ministro. O escolhido desenvolveria funções de chefe do ministério com
a incumbência de organizar o Gabinete do Governo. Entretanto, não havia eleição
entre o Conselho de Ministros para determinar seu Presidente. O que acontecia
efetivamente era que o imperador Dom Pedro II nomeava tão e somente o
Presidente do Conselho de Ministros (a partir de uma lista tríplice enviada
pelos Deputados), deixando-o com a incumbência de escolher os demais membros do
Conselho, que precisariam ainda serem aprovados pela Assembleia Geral.
[3]
“'O Brasil é o café e o café é o
negro'. Essa frase, comum nos círculos dominantes da primeira metade do século
XIX, só em parte é verdadeira. O Brasil não era só café, como não fora só
açúcar. Além disto, a produção cafeeira iria prosseguir no futuro, sem o
concurso do trabalho escravo.
[4]
Com a mão de obra escrava sendo
utilizada em larga escala, foram os cativos apelidados de "tigres" os
responsáveis pelo recolhimento e despejo da urina e fezes de muitos moradores
das cidades durante cerca de 300 anos. Nessa época, a maior parte das casas não
contava com banheiros, água corrente ou algum outro tipo de instalação
sanitária. Por isso, os moradores das antigas cidades faziam as necessidades em
penicos e outros recipientes de metal ou porcelana. Parte do conteúdo, que
continha ureia e amônia, vazava dos tonéis e deixava marcas brancas sobre a
pele negra, parecidas com listras. Por essa reação química, as marcas se
pareciam com as do animal — daí o apelido em tom pejorativo dos
"tigres" ou "tigrados". O cheiro dos tonéis, obviamente,
não era agradável e fazia com que as pessoas não se aproximassem dos
"tigres" enquanto os carregavam. "A pele ficava listrada, com
alternância de faixas pretas e outras descoloridas pela ação química dos
dejetos. Por isso, esses escravos eram conhecidos como tigres", afirma o
jornalista Laurentino Gomes, autor do livro Escravidão, sobre o tema.
[5] A Lei 14.532/2023. Essa lei altera a
tipificação do crime de injúria racial, ou seja, os casos de injúria
relacionados à raça, cor, etnia ou procedência nacional passam a ser
considerados uma modalidade do racismo. O texto ainda prevê novas penas para casos
de racismo em contextos de atividade esportiva, racismo religioso e recreativo.
A nova Lei 14.532/2023 altera e acrescenta alguns pontos à Lei 7.716/1989 (Lei
do Racismo), que continua em vigor conforme as respectivas mudanças. A
principal novidade é que, agora, a injúria racial passa a ser equiparada ao
crime de racismo. Sendo assim, passa a ter pena de reclusão de dois a cinco
anos e multa, assim como nos crimes de racismo. Além disso, agora, os crimes de
injúria racial são imprescritíveis. Isto é, podem ser julgados em qualquer
tempo, independentemente da data em que foram cometidos. Antes da lei
sancionada este ano, a prescrição para injúria racial era de oito anos.
[6] James Watson, laureado com o Prêmio
Nobel em 1962, recentemente afirmou que se sentia "inerentemente
pessimista quanto às perspectivas da África" e de seus cidadãos, porque
"todas as nossas políticas se baseiam no fato de que a inteligência deles
equivale à nossa, enquanto os testes apontam no sentido contrário". As
declarações de Watson causaram agitação porque implicavam que negros fossem
geneticamente inferiores aos brancos, e a controvérsia resultou em sua renúncia
ao posto de diretor do Laboratório de Cold Spring Harbor. Mas ele tinha
razão? Existe uma diferença genética entre negros e brancos que condene os
negros a uma perpétua posição de inferioridade intelectual? A primeira
discussão pública notável dessa questão científica surgiu em um artigo
publicado em 1969 por Arthur Jenson, psicólogo da Universidade da Califórnia em
Berkeley. Ele sustentava que a diferença de 15 pontos nos resultados de testes
de QI dos brancos e negros se devia a uma diferença genética incontornável
entre as duas raças. Mas os argumentos que ele expunha tratavam de maneira
enganosa as provas científicas. Outros estudiosos usaram esses argumentos
depois -Richard Hernnstein e Charles Murray em "The Bell Curve" (A
Curva do Sino), publicado em 1994, por exemplo, e recentemente William Saletan,
em artigos para a revista "Slate"- e cometeram o mesmo erro
[7] O ensaio de Gobineau se tornou
conhecido por suas pretensas e densas justificativas sobre a inferioridade
racial negra e mestiça, obra que acaba de ser publicada em português, dando aos
leitores brasileiros a possibilidade de perceber melhor como autores, a exemplo
de Gobineau, influenciaram a questão racial entre intelectuais brasileiros,
como Oliveira Vianna, João Batista Lacerda e Nina Rodrigues. Esse conjunto de
ideias se tornou a base para a criação de mitos e estigmas vinculados à
população que não era branca (SKIDMORE, 1976). A obra de Arthur Gobineau ganha
sua primeira tradução em português, feita pela editora Antonio Fontoura em
2021. Mesmo após 169 anos desde sua primeira publicação em 1853, ela continua
despertando interesse, não mais pelos argumentos que o autor evoca, amplamente
contestados e superados. Mas pelo modo como serviu de perspectiva e base para o
racismo e outras ideias que ainda pairam sobre o pensamento científico a
respeito da questão racial contemporaneamente. A tradução da obra chegou
tardiamente ao público brasileiro. O livro contém 26 capítulos, nos quais o
autor constrói seu argumento sobre a base da desigualdade das raças humanas
dentro do processo histórico da França pós-revolução e dos destinos da
humanidade. Nesses capítulos, Arthur de Gobineau, de maneira bem objetiva na
linguagem e sincrética, define, conceitua e caracteriza o que considerava como
um dos maiores problemas da questão científica e intelectual de seu tempo, a
miscigenação.
[8] A
literatura negra é composta por obras cuja temática está associada à
experiência de pessoas negras. Além disso, autoras e autores desse tipo de
literatura devem ser afrodescendentes. Desse modo, a obra deve trazer o ponto
de vista dessas pessoas. No Brasil, um dos principais livros da literatura
negra é Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. A literatura negra é
aquela produzida por autoras e autores negros ou descendentes de pessoas
negras. Consequentemente, as narrativas, poesias ou peças teatrais inseridas
nessa categoria trazem como protagonistas as pessoas negras e evidenciam a sua
cultura, ou seja, elementos históricos e étnicos.
É uma literatura essencialmente política, ideológica, e
tem como objetivo a afirmação de uma identidade. Assim, tal nomenclatura é mais
uma forma de dar visibilidade ao discurso ou linguagem dessa minoria política
e, desse modo, valorizar a voz daqueles que, historicamente, foram silenciados.
[9]
Lima Barreto (1881-1922) foi um
importante escritor brasileiro da fase Pré-Modernista da literatura. Sua obra
está impregnada de fatos históricos e de uma perspectiva da sociedade carioca.
Analisa os ambientes e os costumes do Rio de Janeiro e faz uma crítica à
mentalidade burguesa da época. Lima Barreto foi um escritor do seu tempo e de
sua terra. Anotou, registrou, fixou e criticou asperamente quase todos
os acontecimentos da República. Tornou-se uma espécie de “cronista” da antiga
capital federal.
[10] Na obra machadiana, porém, afro-brasileiros
estão apenas nos lugares subalternos. São escravizados, alforriados, empregados
domésticos, prestadores de serviço. Aliás, um e outro ganham nome. O
paternalismo e a condescendência com que são tratados fixam padrão visto até
hoje em nossas novelas. “Morava só; tinha um escravo da mesma idade que ele, e
cria da casa do pai — mais irmão do que escravo, na dedicação e no afeto” (A
mulher de preto in Contos fluminenses, p.65 — para todas as citações aqui: Ed.
Globo, 1997). E ainda: “Raimundo, nove anos mais velho que o senhor,
carregava-o ao colo e amava-o como se fora seu filho. Vendo-se livre
pareceu-lhe que era um modo de o expelir de casa, e sentiu um impulso atrevido
e generoso. Fez um gesto para rasgar a carta de alforria, mas arrependeu-se a
tempo. […] Luís Garcia não dava ordem nenhuma; tinha tudo à hora e no lugar
competente” (Iaiá Garcia, p.3).
[11]
A crônica é considerada por
muitos estudiosos contemporâneos como um “registro circunstancial feito por um
narrador-repórter”. Esta concepção moderna do gênero baseia-se na tênue linha
entre literatura e jornalismo onde se encontra a crônica, por comumente não só
tratar de fatos e notícias, mas também por inserir características literárias
ao escrito – este geralmente breve e com linguagem simples. A crônica, porém,
não é um gênero surgido na modernidade, como alguns poderiam pensar. Tradicionalmente,
o termo “crônica”, do grego chronos, remete-nos à noção de tempo,
oferecendo-nos relatos de eventos seguindo uma ordem cronológica, mais especificamente,
uma compilação “de fatos históricos apresentados segundo a ordem de sucessão no
tempo”. A presença de fatos históricos faz com que as crônicas, que datam de
antes do nascimento da imprensa, tivessem, primordialmente, uma função
documental. Já na Bíblia, no Antigo Testamento, por exemplo, era possível encontrar
livros denominados “Crônicas I” e “Crônicas II”.
[12] Basicamente é a história de uma
família muito pobre em que o pai vive de um trabalho informal e precarizado dos
mais desgraçados do século XIX: ele capturava escravos fugidos. Portanto a
renda não era fixa, ele só conseguia dinheiro quando era recompensado pela
captura dos escravos anunciados nos jornais. Mas a grande ironia fica por conta
da situação em que é colocado o protagonista: para salvar a vida do filho,
Cândido tem que entregar aos donos a mulata Arminda, que acaba por abortar.
[13] Em vida, Machado de Assis publicou
sete coletâneas de contos organizadas por ele. Grande parte desses contos já
havia saído em jornais ou em almanaques da época. A exceção é o livro Relíquias
de Casa Velha, de 1906, sua última organização de contos. Os contos de
Relíquias da Casa Velha são narrados em terceira pessoa, com uma linguagem
irônica e perspicaz, peculiar de Machado de Assis. A trama apresenta situações
do cotidiano da época, explorando as relações sociais e comportamentais da
sociedade carioca do
século XIX. Os contos revelam a habilidade do autor em captar os detalhes e
sutilezas da vida urbana, com suas características marcantes de humor e crítica
social.
[14] À medida em que se celebrizava,
Machado foi passando por um processo de branqueamento social, a ponto de sua
certidão de óbito classificá-lo como branco… Disponível em
https://noticias.uol.com.br/colunas/rodrigo-ratier/2024/02/06/negro-e-critico-do-racismo-um-machado-de-assis-longe-da-fama-de-isentao.htm?cmpid=copiaecola
[15] A natureza deste escritor, segundo
Machado, é formada de partes contraditórias, por ser “a fusão do útil e do
fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo. Estes dois elementos, arredados como polos,
heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo
animal” (idem). Quem antes era planta (um ser vivo, porém impossibilitado de
mover-se por conta própria, a menos que seja transplantado) agora já é animal,
ser que goza de mais independência, pois possui mobilidade própria.
[16] Cruz e Sousa (1861-1898) foi o mais
importante poeta simbolista brasileiro. Com os livros: Missal (poemas em prosa)
e Broquéis (versos) inaugurou oficialmente o Simbolismo no Brasil. João da Cruz
e Sousa nasceu em Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, Santa
Catarina, no dia 24 de novembro de 1861. Filho de escravos alforriados nasceu
livre. Em 1885, Cruz e Sousa estreou na literatura com o livro de poemas em
prosa: Tropos e Fantasias, em parceria com Virgílio Várzea, no qual se
reconhecem algumas características marcantes do "Simbolismo". Nesse
mesmo ano, assumiu a direção do jornal "O Moleque", cujo título se
deve à sua rebeldia contra o preconceito de cor, de que sempre foi alvo.
[17] Depois disso, Machado
explorou quase todos os gêneros literários e se a versatilidade impressiona, a
quantidade de material produzido também: escreveu nove romances, 200 contos,
mais de 600 crônicas, diversas peças teatrais, cinco coletâneas de poemas e
sonetos. Trabalho como tipógrafo, revisor, funcionário público, colaborador
para revistas e jornais do Rio de Janeiro. Como carioca assistiu ao fim do
Segundo Império e o surgimento da República e sua obra relatou tudo isso.
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