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O Negro na obra de Machado de Assis

 

 

O Negro na obra de Machado de Assis


Le Noir dans l'œuvre de Machado de Assis

Resumo: Machado de Assis é um ícone do panorama da literatura brasileira. Apesar da origem humilde e pobre, esse fato não o impediu de ultrapassar os preconceitos existentes em sua época, conseguindo uma posição de prestígio dentro da sociedade e tornando-se uma exceção em seu tempo.  Apesar de acusado de absenteísmo, utilizou sua escrita para criticar com ironia o negro na sociedade de sua época.

Palavras-chave: Literatura. Questão racial. Racismo. Escravatura. Abolição. História do Brasil.

Résumé: Machado de Assis est une icône dans le panorama de la littérature brésilienne. Malgré ses origines modestes et pauvres, cela ne l'a pas empêché de surmonter les préjugés qui existaient à son époque, d'accéder à une position prestigieuse au sein de la société et de devenir une exception à son époque. Bien qu’accusé d’absentéisme, il a utilisé ses écrits pour critiquer ironiquement les Noirs dans la société de son époque.

Mots-clés: Littérature. Question raciale. Racisme. Esclavage. Abolition. Histoire du Brésil.

 

 

Recordemos a lucidez de Grada Kilomba que afirmou in litteris: "O colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Uma ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra". Enfim, Machado de Assis fora estigmatizado por muitos críticos de seu tempo e mesmo depois por não se posicionar diante da causa dos negros cativos, adotando um rótulo absenteísta que fora relacionado à sua imagem por muito tempo.

Há em sua escrita concretas pistas de denúncia, com investigação do contexto histórico de Machado de Assis e, ainda o debate de estudiosos como sociólogos e historiadores que notaram claras pistas da história brasileira em seu legado literário. Em "O caso da vara" de 1899, "Sabina" de 1875 e "Pai contra mãe" de 1906 abordou a escravidão e o personagem negro o que revelou um país escravocrata e seus espólios cruéis.

"A ideia que fazemos dos grandes vultos é quase sempre tão diversa da sua personalidade real como as estátuas dos homens de carne e osso que foram um dia. Como a estátua, a celebridade fixa o indivíduo em atitudes que podem ter sido culminantes, ou características, mas não foram únicas, nem habituais. Uma e outra tiram-lhe o movimento, o desalinho, o calor da vida. De um homem, de alguma coisa de natural e esquivo, de familiar e incompreensível, fazem um boneco de bronze, rígido e definitivo sem mistérios como sem fraquezas".  (PEREIRA, 2017).

Machado de Assis nascera em 1839 no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, quando ainda vigorava o Brasil Império. O cenário histórico-cultural do país do século XIX nos remete a um Segundo Reinado do Imperador Dom Pedro II (1840-1889), há três períodos, a saber: a contenção das rebeliões regenciais, a política interna (1840-1850) e a política externa que contou com a Questão de Christie[1], conflitos platinos e a Guerra do Paraguai; a economia nacional (1850-1870) e as leis abolicionistas e ainda os movimentos republicanos (1870-1889). Vivenciávamos um governo monarquista e um parlamentarismo às avessas[2].

 No cenário econômico dominava a economia cafeeira que era a fonte principal de lucros de latifundiários que dependiam da mão de obra escrava. A industrialização trazida por Barão de Mauá bem como a fundação de bancos, indústrias e ferrovias significava um notável progresso. Porém, o governo imperial não colaborou financeiramente com o Barão, tanto que enfrentou grandes dificuldades financeiras e terminou falido, pois a sociedade então vigente era essencialmente agrária e escravocrata.

Cumpre ainda destacar que: "A palavra “negro” é uma das mais polissêmicas do vernáculo. Sua polissemia, quem sabe, contribuiria para seu desprezo na caracterização de um corpus. Afro-brasileiro, expressão cunhada para a reflexão dos estudos relativos aos traços culturais de origem africana, independeria da presença do indivíduo de pele escura, e, portanto, daquele que sofre diretamente as consequências da discriminação.

Portanto, a palavra “negro” nos remete à reivindicação diante da existência do racismo, ao passo que a expressão “afro-brasileiro” lança-nos, em sua semântica, ao continente africano, com suas mais de 54 (cinquenta e quatro) nações, dentre as quais nem todas são de maioria de pele escura, nem tampouco estão ligadas à ascendência negro-brasileira. Remete-nos, porém, ao continente pela via das manifestações culturais. Como literatura é cultura, então a palavra estaria mais apropriada a servir como selo. (CUTI, 2010).

Nesse cenário, os negros eram objeto de compra e venda, sendo utilizados para o trabalho no campo, nas lavouras de café, cana de açúcar, dentre outros afazeres. E, sofriam os mais diversos abusos e perversidades, bem como eram forçados a viver de modo inumano e cruel. 

Fausto afirmou, in litteris:  "“O Brasil é o café e o café é o negro”[3]. Essa frase comum nos círculos dominantes, na primeira metade do século XIX, só em parte é verdadeira. O Brasil não era só o café, como não fora só açúcar. Além disso, a produção cafeeira iria prosseguir no futuro, sem o concurso do trabalho escravo. Mas não há dúvida de que nesse período boa parte da expansão do tráfico de escravos se deveu às necessidades da lavoura de café". (FAUSTO, 2006).

Gilberto Freyre em sua obra "Casa-Grande & Senzala" abordou sobre o desespero dos cativos que era tão expressivo que chegavam a não ter desejo de continuar vivendo, tanto que muitos se suicidavam comendo terra, enforcando-se, envenenando-se com ervas e potagens dos mandingueiros (2003) o que reafirmou a informação registrada por Jean-Charles Marie Expilly sobre os carregadores de dejetos, adjetivados como "tigres", o que não se aplicava a ferocidade mas ao aspecto de listras que se formavam em seus corpos. In verbis:

"Ao escravo negro se obrigou aos trabalhos mais imundos na higiene doméstica e pública dos tempos coloniais. Um deles, o de carregar à cabeça, das casas para as praias, os barris de excremento vulgarmente conhecidos por “tigres”[4]. Barris que nas casas-grandes das cidades ficavam longos dias dentro de casa, debaixo da escada ou em um outro recanto acumulando matéria. Quando o negro os levava é que já não comportavam mais nada. Iam estourando de cheios. De cheios e de podres. Às vezes largavam o fundo, emporcalhando-se então o carregador da cabeça aos pés. Foram funções, essas e várias outras, quase tão vis, desempenhadas pelo escravo africano com uma passividade animal. Entretanto, não foi com o negro que se introduziu no Brasil o piolho; nem a "mão de cocar"; nem o percevejo de cama. E é de presumir que o escravo africano, principalmente o de origem maometana, muitas vezes experimentasse verdadeira repugnância pelos hábitos menos asseados dos senhores brancos". (FREYRE, 2003).

A narrativa revelava a extrema precariedade sanitária que prevalecia no Rio de Janeiro Imperial.  "O Rio de Janeiro da infância e juventude de Machado de Assis era uma cidade de cerca de 300.000 habitantes, em grande parte de negros e mestiços ainda escravos ou forros, em que tantas belezas naturais e o surto do progresso da cidade contrastavam com as suas deficiências, falta de higiene, insalubridade, precariedade de meios de transporte e o tratamento aviltante que era dado de modo geral aos escravos, mais ainda aos submetidos aos castigos físicos e morais". (SILVA, 2014).

As enormes dificuldades encaradas pelos negros no Brasil Imperial eram escancaradas. Os negros escravos eram desprezados e reputados como utensílios descartáveis pela elite senhorial da época.  A demora para a emancipação e alcançarem a liberdade mesmo diante das leis que serviam a tal fim, principalmente em face da sensível pressão exercida pela Inglaterra que se iniciou em 1826, através de um tratado internacional.

Mesmo com o fim oficial do tráfico negreiro em 1850 e com a sucessão de leis que abrandavam a situação dos escravizados e seus descendentes, tais como a Lei Eusébio de Queiroz (1850), a Lei do Ventre Livre (1871), a Lei dos Sexagenários (1885) a escravidão durou oficialmente até 1888, quando a Lei Áurea. Não obstante tantas críticas dirigidas à abolição, é inegável destacar que fora resultante de processo e culminância oficial da emancipação do negro.

A luta pela emancipação e libertação nem foi uma presença marcante nas ações dos escravizados e seus descendentes. As lutas, as rebeliões e os quilombolas, foram respostas enfáticas ao regime da escravidão. E, em todas as lutas, o corpo negro regulado pela escravidão se mostrava rebelde e lutava ciosamente pela sua emancipação.

A Lei Áurea promulgada em 1888 pela Princesa Isabel foi a mais importante dentre as demais, pois libertou os negros do jugo da escravidão. E, grandes problemas surgiram no pós-abolição pois não havia planejamento para integrá-los na sociedade. O que representou um progresso, deixou também muitos problemas, pois não considerou a inclusão do negro, como cidadão na sociedade brasileira da época[5].

E, o negro ficou relegado às atividades marginais, ao subemprego, sendo vítima até hoje de pesado preconceito e sem oportunidade de acesso à escola. Mesmo o racismo seja crime, ainda assim, há veemente cometimento em plena contemporaneidade.

A Lei Áurea (Lei nº 3.353), foi sancionada pela Princesa Dona Isabel, filha de Dom Pedro II, no dia 13 de maio de 1888. A lei concedeu liberdade total aos escravos que ainda existiam no Brasil, um pouco mais de 700 mil, abolindo a escravidão no país. No âmbito regional, em junho de 2015, os ministros do Mercosul aprovaram Declaração Contra o Tráfico de Pessoas e o Trabalho Escravo, pela qual os países-membros se comprometeram a implementar políticas regionais para prevenção, combate e reinserção das vítimas desses crimes no mercado de trabalho.

Destaque-se que Machado de Assis fora testemunha e observador de tais questões históricas de seu tempo, pois sua posição e cargos a serviço do Imperador não o pouparam de enfrentar um grande inimigo, o racismo estrutural.

A escritora Grada Kilomba (2019), em seu livro “Memórias da Plantação - Episódios de Racismo Cotidiano” concebe uma definição sobre o que seria o racismo estrutural:

“O racismo é revelado em um nível estrutural, pois pessoas negras e People of color estão excluídas da maioria das estruturas sociais e políticas. Estruturas oficiais operam de uma maneira que privilegia manifestadamente seus sujeitos brancos, colocando membros de outros grupos racializados em uma desvantagem visível, fora das estruturas dominantes. Isso é chamado racismo estrutural”.  (KILOMBA,2019).

Ao investigar o racismo no Brasil, no recorte temporal em questão, nos deparamos com uma das causas que, foi a grande influência da presença de teorias científicas muito complexas que chegavam da Europa, via cientistas estrangeiros, cujo objetivo era segregar as pessoas pela sua tonalidade de pele, mostrando, desse modo, qual raça era superior, no caso, a branca “ariana”. Essas ideologias raciais, de certa forma, influenciaram alguns letrados brasileiros.

A Lei 7.716/1989, conhecida como Lei do Racismo, pune todo tipo de discriminação ou preconceito, seja de origem, raça, sexo, cor, idade. Em seu artigo 3º, a lei prevê como conduta ilícita o ato de impedir ou dificultar que alguém tenha acesso a cargo público ou seja promovido, tendo como motivação o preconceito ou discriminação. Por exemplo, não deixar que uma pessoa assuma determinado cargo por conta de raça ou gênero. A pena prevista é de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão.

A lei também veda que empresas privadas neguem emprego por razão de preconceito. Esse crime está previsto no artigo 4o. da mesma lei, com mesma previsão de pena.

Desde 12 de janeiro de 2023, com a sanção da Lei 14.532, a prática de injúria racial passou a ser expressamente uma modalidade do crime de racismo, tratada de acordo com o previsto na Lei 7.716/1989. Até então, a injúria racial estava prevista apenas no Código Penal, com penas mais brandas e algumas possibilidades que agora deixam de existir.

A mudança foi importante por reconhecer que a injúria racial também consiste em ato de discriminação por raça, cor ou origem que tem como finalidade, a partir de uma ofensa, impor humilhação a alguém. A alteração legislativa acompanha recentes entendimentos dos Tribunais Superiores que já vinham afirmando que o crime de injúria racial não prescreve e que poderiam ser enquadrados como racismo.

Cabe citar a jurisprudência abaixo:

Comete o crime de injúria racial aquele que, imbuído do ânimo de ofender a honra subjetiva de determinada pessoa, insulta-a com palavras preconceituosas relacionadas à sua cor, raça, etnia ou origem. Para a caracterização desse crime, deve estar presente o elemento subjetivo do tipo penal (dolo), ou seja, o animus injuriandi, que consiste na intenção do agente de atingir a honra subjetiva da vítima, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro.

1.1. In casu, restou demonstrado que o réu agiu de forma livre e consciente com a vontade de ultrajar a vítima em virtude de sua cor/raça, movido por sentimento racista. Assim, estando presente o dolo específico de aviltar a honra subjetiva da vítima, deve o ofensor responder pelo crime tipificado no art. 2º-A da Lei n. 7.716/1989.” Acórdão 1845467, 07070531120228070014, Relator(a): SANDOVAL OLIVEIRA, 3ª Turma Criminal, data de julgamento: 11/4/2024, publicado no PJe: 18/4/2024.

 

Prática de injúria motivada pela orientação sexual ou de gênero – possibilidade de tipificação da conduta como injúria racial. 

“1. Não há falar nulidade por violação ao princípio da reserva legal/taxatividade aos crimes de injúria racial e discriminação por questão de gênero praticados em janeiro de 2023, antes do julgamento dos ED no MI 4733, de 11/09/2023. Consoante entendimento da ADO 26 STF, em consonância com os referidos ED no MI 4733, aplica-se, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei nº 7.716/89 à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero.  2. Comete crime de injúria racial aquele que, imbuído do ânimo de ofender a honra subjetiva de determinada pessoa, insulta-a com palavras preconceituosas relacionadas à sua cor, raça, etnia ou origem, bem como orientação sexual, 1.1. Para a caracterização desse crime, deve estar presente o elemento subjetivo do tipo penal (dolo), ou seja, o animus injuriandi, que consiste na intenção do agente de atingir a honra subjetiva da vítima, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. 1.2. No presente caso, restou demonstrado que o réu agiu de forma livre e consciente com a vontade de ofender a vítima em virtude de sua orientação sexual. Assim, estando presente o dolo específico de aviltar a honra subjetiva da vítima, além de discriminar a ofendida por questão de gênero, deve o ofensor responder pelos crimes tipificados nos artigos 2º-A e 20, caput, da Lei 7.716/89.”    Acórdão 1849735, 07037153420238070001, Relator(a): SANDOVAL OLIVEIRA, 3ª Turma Criminal, data de julgamento: 18/4/2024, publicado no PJe: 29/4/2024. 

 

Discriminação por identidade de gênero e orientação sexual – configuração de crime de injúria racial

 

“3. O crime de injúria racial reúne todos os elementos necessários à sua caracterização como uma das espécies de racismo e por ser espécie do gênero racismo, o crime de injúria racial é imprescritível. Precedentes. Entendimento positivado pela Lei 14.532/2023. 4. Tendo em vista que a injúria racial constitui uma espécie do crime de racismo, e que a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual configura racismo por raça, a prática da homotransfobia pode configurar crime de injúria racial.”    MI 4733 ED, Relator Ministro EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, data do julgamento 22/8/2023, publicação: 11/9/2023.  

Lilia Moritz Schwarcz em seus estudos sobre raça tece apontamentos sobre tal questão, in verbis:

“(...) no início do século XIX, o termo raça foi amplamente introduzido na literatura mais especializada por Georges Cuvier (1769-1832) quando mostrou as diferenças existentes entre os vários grupos humanos. Surge neste período também, um grande embate sobre a origem  da humanidade, entre dois pensamentos antagônicos, de um lado estava o monogenismo,  pensamento este baseado nos estudos bíblicos e na crença de um pai universal (Adão), onde  o homem teria se originado de uma fonte comum, portanto a humanidade seria uma, sendo  assim, os diferentes tipos de homem eram produto da maior degeneração ou perfeição do  Éden, indo do mais perfeito ao menos perfeito, com uma maior ou menor aproximação do  paraíso. E do poligenismo, que surge para contestar os dogmas monogenistas da igreja, e fortalecer uma interpretação biológica na análise do comportamento humano, que passam a ser vistos como resultado das leis biológicas e naturais.

Surgindo daí duas teorias para a interpretação da capacidade humana, a frenologia e a antropometria, levando em conta o tamanho e a proporção do cérebro de diferentes povos”. (SCHWARCZ apud Silva, 2010)[6].

O “homo sapiens" tem um cérebro desproporcionalmente grande em relação aos de outros animais. Os "sapiens" modernos são dotados de um cérebro com dimensões de 1200 a 1400 centímetros cúbicos, enquanto outros mamíferos que pesam cerca de 60 kg têm cérebros com tamanhos médios de 200 cm3.

Ainda em seu artigo: “A teoria das raças disserta sobre o olhar científico no que tange aos conceitos preestabelecidos por cientistas sobre as etnias. De acordo com a historiadora, a partir da produção “A origem das espécies”, de Darwin “surge uma grande inquietação nos intelectuais não somente pela grande descoberta da pesquisa, mas também pelo uso das terminologias: “sobrevivência do mais apto”, “adaptação” e “luta pela sobrevivência”, que o estudo de Darwin possibilitava”.

Na segunda metade do século XIX, chegaram ao Brasil diversas teorias raciais, também chamadas de darwinismo racial, que diziam que havia diferenças inatas entre brancos e não-brancos, inclusive do ponto de vista biológico. Essas teorias eram predominantes nas ciências sociais, na biologia e na medicina, servindo de base para a eugenia, que defendia a separação e o isolamento das populações, estimulando a reprodução da branca, tida como superior, e buscando o extermínio da negra e da indígena, consideradas inferiores.

O escritor Eduardo de Assis Duarte (2009) em seu livro “Machado de Assis Afrodescendente” dialoga sobre o pensamento de parte dessa elite - predominante na época - através da linha de raciocínio de um nobre “(...) O Conde Arthur Gobineau[7] era representante diplomático do governo francês no Brasil, residiu na corte à época de Machado e se tornou amigo de D. Pedro II” (DUARTE, 2009).

Segundo Duarte (2009), Gobineau defendia a vertente científica do etnocentrismo, pregava a superioridade da raça branca, ocidental e cristã. (DUARTE, 2009). É inegável a postura racista do francês “Trata-se de uma população totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia" (GOBINEAU apud in: Raeders apud Schwarcz ,1994)

De acordo com Schwarcz (1994), o tema da mestiçagem, ou seja, a mesclagem da raça branca, negra e indígena, como emblema da nação, era um fator que estava eclodindo no país nos mais variados pilares da sociedade.

 O apontamento de Munanga sobre o interesse dos intelectuais do século XIX, em estabelecer um pertencimento étnico, uma identidade que fosse propriamente brasileira e um ideal de nação o antropólogo cita os literatos que se lançaram nessa construção identitária.

Segundo a pesquisadora Dalva Aparecida Marques Silva (2010), em suma, os negros, escravos e africanos, pelo olhar científico, eram considerados inferiores:

Os negros, escravos e africanos passaram a ser “objetos de sciencia”, se tornaram “classes perigosas”, sendo definido pela ciência como diferentes e inferiores, pois era a partir da ciência que se estabeleciam as diferenças e as inferioridades. Foi neste contexto de transição do trabalho escravo para o livre que as teorias raciais desenvolvidas na Europa começaram a penetrar no pensamento social brasileiro. Surgindo assim, o racismo como construção social baseado nos pressupostos científicos. (SILVA, 2010)

Esse preconceito racial, o qual reverbera a partir dessas teorias raciais eurocêntricas elencadas, se encontra enraizado na cultura brasileira, e por consequência, acaba por transparecer na ficção literária do país que coloca tanto o sujeito negro escritor quanto o personagem negro em segundo plano. Percebemos que, ocorre um certo apagamento tanto da imagem, quanto dos escritos de autores negros do cânone literário.

Os olhares estrangeiros são os pioneiros na verificação dos traços da presença negra na literatura brasileira, essas pesquisas realizadas por eles, tendem a demostrar com mais precisão a ausência no âmbito literário do negro na ficção.

 Existe um certo preconceito com a personagem negra, levando-a a ocupar tanto na prosa quanto na poesia - um segundo plano “marginalizado” e, devido a esse fator, a personagem passa pelo processo de objetificação sendo quase que desumanizada.

Otávio Ianni pontua que para pertencer a “literatura negra”[8] o autor deve ser negro e escrever sobre a sua raça. Nesse ponto, muitos desconsideram Machado de Assis, pela imparcialidade. De acordo com Ianni, para se fazer a descoberta da presença do negro na produção literária de Assis, é necessário romper “o mapeamento demográfico”, “racial”, “sociológico” ou “ideológico” (1988).

"É provável que Machado de Assis, Cruz e Souza e Lima Barreto sejam os fundadores da literatura negra. Sem prejuízo da sua importância na literatura brasileira. Mas, também é provável que o resgate desses autores pela literatura negra permita repensá-los melhor, descobrir dimensões novas em suas obras, redimensioná-los no âmbito da literatura brasileira.

Certamente contribuem decisivamente para a formação da literatura negra, enquanto tema e sistema". (IANNI, 1988).

Ao ler com muita atenção os textos de Machado de Assis, os quais possuem em seus corpus textuais o personagem negro, é que mesmo esses personagens sendo secundários, eles ganham falas expressivas e uma certa notoriedade e funções primordiais para o desfecho dos escritos.

 Desse modo, desvenda, não somente os males da escravidão, bem como as faces de um país patriarcal que construiu suas bases por cima de muito sangue de negros, indígenas e mulatos, em uma ironia muito velada, Assis, oferece uma amostra do que presenciava. Levando em consideração todo esse processo político-econômico-social que analisamos, compreendemos que

Machado contribuiu muito para o hall de autoria negra, como sujeito negro escritor e com sua pena da galhofa e tinta da melancolia desenhou as mazelas e dores dos menos abastados.

Por não ter um posicionamento que fosse expositivo, ainda há quem diga que Machado de Assis era alheio às penúrias que os brancos mais abastados cometiam em seu país contra os escravos africanos, pois ele não executava a militância de forma direta e combativa, como alguns autores negros de seu tempo deram exemplo: Luís Gama, Lima Barreto[9] etc.

Os críticos, que apoiam sobre esse pensamento, alegam que o autor não se pronunciava acerca do tema, sempre optando pela neutralidade e imparcialidade.

Alguns críticos e pesquisadores se debruçaram na missão de provar que Machado se importava, sim, com os africanos e afrodescendentes que sofriam em terras brasileiras, e que a sua produção escrita, de certo modo, tratava de denunciar as crueldades vividas pelos cativos. Ou seja, toda a tragédia alinhada à escravidão e seus aparelhos de repreensão, eram formas de denunciar de forma subjetiva os desalinhos da decadência da comunidade, da qual era membro.

Há relatos de que Machado compareceu a algumas confraternizações em comemoração ao fim da escravidão:

"Machado de Assis participou de todas as comemorações de regozijo pela promulgação da Lei Áurea. No âmbito da Secretaria da Agricultura, onde trabalhava, encarregado de proferir saudação ao ministro conselheiro Rodrigo Augusto da Silva, autor do projeto abolicionista apresentado à Câmara dos Deputados no dia 7 de maio, o fez em termos calorosos, louvando a decidida atuação do Ministro no acontecimento histórico tão justamente celebrado, mas que contrariava altos interesses dos proprietários de escravos”.

“No dia 17 de maio, assistiu à missa comemorativa da abolição com a presença da Princesa Isabel, homenageada por todos os presentes, e logo após participou do almoço com que em sua casa o tribuno José de Patrocínio o recebeu juntamente com o ministro da justiça, Ferreira Viana”.

“No dia 20, participou, em carruagem aberta, do grande cortejo cívico organizado pela imprensa do Rio de Janeiro, vendo entre os presentes o Marechal Deodoro da Fonseca, representante da facção do Exército que assinara antes um manifesto abolicionista". (SILVA, 2014).

Ainda sobre o ponto de vista de Machado de Assis quanto à questão dos escravos negros e mestiços no Brasil no século XIX, Silva (2014) discorre sobre como Machado deveria se sentir, sendo ele também um mestiço.

Machado de Assis escreveu uma enorme coletânea de crônicas que trazem em seus eixos centrais conteúdos que fazem alusão ao entrecruzamento de momentos históricos, como, por exemplo, a queda do Império (1881-1849) e início da República no Brasil (1889).

A crônica que data de 14 de maio de 1893 versa a respeito da Lei Áurea de 1888, e de como foi importante esse grande feito para os escravos. Conta também sobre o júbilo que foi para os abolicionistas presentes, na ocasião.

Mesmo que Machado não tenha sido um dos maiores ativistas abolicionistas do século XIX, isso não significa que ele apoiasse a escravatura, tampouco que tenha aderido à ideologia do embranquecimento, como alguns pesquisadores cogitam.

Nessa correspondência de Machado para Joaquim Nabuco, que data de 30 de setembro de 1905, percebemos a enorme afetuosidade que o prosador sentia por seu grande amigo:

“Quando cá vier tomar um banho de pátria, será recebido nela como merece de todos nós que lhe queremos. Adeus, meu caro Nabuco, continue a lembrar de mim onde quer que o nosso lustre nacional peça a sua presença. Eu não esqueço o amigo a quem vi adolescente, e de quem ainda agora achei uma carta que me avisava o dia em que deveria fundar a Sociedade Abolicionista, na rua Princesa. Vinte e tantos anos! Era o princípio da campanha vencida pouco depois com tanta glória e tão pacificamente”. (MACHADO apud JÚNIOR, 1957).

Fica claro, nessa correspondência, que havia diálogos entre os dois sobre a emancipação dos escravos, tendo em vista que seu parceiro era a favor do fim do tráfico de negros e da exploração dessa mão de obra.

A pesquisadora Elisângela Aparecida Lopes (2007), em sua tese que tem por título “Homem de seu tempo e de seu país - senhores escravos e libertos” nos escritos de Machado de Assis discorre sobre a injustiça que o cronista sofre, no que diz respeito à presença do tema da escravidão, e seus desdobramentos em suas narrativas. Muitos dos críticos e biógrafos, ao acusarem Machado de absenteísmo, não pesquisaram seu acervo de obras a fundo.

 

Nesse sentido, o jornalista concluiu:

“Se Machado de Assis tem sido frequentemente acusado de não ter participado dos grandes acontecimentos do seu tempo, é que, dentre os que tais coisas dele dizem, uns não tiveram paciência para pesquisar-lhe minunciosamente a vida e a obra, outros não o estimavam e outros ainda, porque, à falta de ideias próprias, não fazem mais que repetir mecanicamente os primeiros. Criou-se, assim, uma imagem deformada de Machado de Assis, tão deformada que, em verdade, o eminente escritor assumiria, aos nossos olhos, um aspecto monstruoso, talvez mesmo odiento, se realmente fosse como o pintam”. (JÚNIOR, 1957).

Em suma, Machado de Assis prova, através de sua impecável postura como cidadão brasileiro e escritor excepcional, que ser mulato não limitava sua intelectualidade em nada, e seu ativismo ficou registrado em suas obras.

 Existem historiadores, críticos literários e sociólogos que, se lançaram a esmiuçar essa questão, e um dos mais notáveis é o sociólogo Raymundo Faoro, que se propôs a examinar as agruras sociais à época de Assis juntamente com suas obras, na produção intitulada Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio de 1976.

De acordo com a pesquisadora Mariana da Silva Lima: “Nesse livro, Raymundo Faoro interpretou de maneira original e abrangente as relações entre a obra de Machado de Assis e fatos essenciais da história brasileira. Comentando a tradição crítica de análise histórica da obra de Machado”. (LIMA,2012).

Nesse texto, o sociólogo se propõe a apurar a tecitura do diálogo estabelecido entre as obras de Assis, no viés literário, e os acontecimentos históricos, se espelhando em conceitos de sua obra consagrada “Os donos do poder".

Destacou Alfredo Bosi sobre tal dualismo, in litteris:

“Na perspectiva de Raymundo Faoro, o narrador Machado de Assis representa, na esfera dos indivíduos, as marchas e contramarchas dos interesses e dos desejos de poder no nível micro social: entre homem e mulher, entre irmãos, entre amigos, entre famílias.

Em outras palavras:  a literatura, como mimesis do real, trabalha com o singular, ao passo que a ciência social constrói o tipo que enfeixa características de uma pluralidade de indivíduos. Neste sentido, Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio retoma e individualiza Os donos do poder.” (BOSI, 2004).

Ainda sobre esse aspecto Bosi, afirma:

“Tomando por assente a relação geral e constante entre romance e sociedade, pedra de toque do realismo, Raymundo Faoro traçará o mapa da vida política e econômica do Segundo Reinado com os olhos postos em personagens e situações machadianas”.

Um levantamento exaustivo, de que a exposição seguinte tentará captar apenas as linhas mestras. A construção do livro está representada com nitidez pelas duas figuras geométricas do título: a pirâmide e o trapézio. As figuras, ora superpostas, ora combinadas, constituem o eixo sincrônico da tese de Faoro.

São a forma do quadro social, tal como se compôs no Segundo Reinado. A pirâmide desenha a estrutura vertical das classes. A base larga reporta-se aos homens do trabalho braçal:  os escravos, os forros, os pobres em geral, brancos ou mestiços. O vértice é constituído pela reduzida classe dos proprietários, os fazendeiros, os seus comissários e os banqueiros.

O comerciante escalona-se na parte intermediária da pirâmide e gradua-se na proporção dos seus cabedais. A pirâmide tem a ver diretamente com a produção e o negócio. Os seus móveis serão a acumulação, o lucro ou o consumo alto – no vértice –; a base será prioritariamente o escravo, secundariamente o trabalhador assalariado. (BOSI, 2004).

Bosi conclui que: Reler Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio são ser chamado a um diálogo fecundo entre a sociologia e a hermenêutica, a explicação e a compreensão, o quadro e o olhar, o que não desprazeria ao mestre de Raymundo Faoro, aquele Weber que sondou, em toda a sua obra, as intrincadas relações entre o indivíduo e a sociedade. (BOSI, 2004).

Roberto Schwarz (2006), no livro “Ao vencedor as batatas”, 1977, que foca um olhar atento para o “paternalismo” e a sua “racionalização” nos primeiros romances de Assis: “A mão e a luva”, “Helena” e “Iaiá Garcia”[10]. Essa fase literária de Machado dialoga segundo o autor com   contextos sociais da época do escrito.

Cuti (2010), ao analisar a relação “autor versus leitor” conclui que, há uma “intenção” do autor no processo de escrita, ou seja, existe o desejo de dialogar com um possível leitor. No fragmento abaixo o pesquisador disserta acerca dessa questão:

“Quando alguém se põe a escrever, não é verdade que escreve para si mesmo. Já no ato da escrita, um leitor ideal vai se formando na mente do escritor, alguém que ele gostaria, intimamente, que lesse o seu texto.

As costumeiras dedicatórias são a revelação da ponta do iceberg deste leitor concebido no ato da própria escrita, sem que, muitas vezes, o escritor tenha consciência. Isso ocorre porque, ainda que o ato da escrita seja solitário, na maioria das vezes ele enseja o princípio de um grupo: o autor e o leitor. É um ato de comunicação. (CUTI, 2010). coteja os romances da fase de maturidade de Machado “Casa velha” (1885), “Quincas Borba “(1891), “Esaú e Jacó” (1904) e “Memorial de Aires” (1908), bem como crônicas da série “Bons dias!”.[11]

 De acordo com Nicolau Sevcenko, Gledson aponta para um recurso utilizado por Assis, denominado “realismo enganoso". E, o ponto de vista do próprio Chalhoub, o pesquisador Adelto Gonçalves, afirma que “(…)  Chalhoub traça um perfil da hipócrita elite brasileira que se estabeleceu apoiada sobre o braço do escravo, reproduzindo alguns hilariantes discursos ou diálogos travados no Parlamento a uma época em que o Brasil dava ao mundo o triste espetáculo de representar o último baluarte da escravidão.”

Observamos através dos estudos dos importantes teóricos a comprovação da presença da história do Brasil na literatura Machadiana, para além do retrato da escravidão. Notamos também todo o aporte do sistema patriarcal, o qual dividia a elite senhorial dos escravos - embutidos nos personagens criados pelo romancista - nos romances, nas crônicas e nos demais gêneros que o cronista se propôs a escrever.

Entendemos com isso, que, Assis retratou os mais distintos níveis da sociedade do tempo imperial ao início da república. Dados os fatos, se torna tendencioso o argumento de que não houve a contribuição de fatores externos na escrita de Assis, ou que o autor foi alheio as questões de sua época, se é algo que paira sob sua escrita.

 

Pai contra mãe[12]

Uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro, da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Suppõe que o dono pense em as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pôde extrair uma dúzia dellas que mereçam sair cá fora.

Chama-lhe a minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos e impressos que aqui vão, ideias, histórias, críticas, diálogos, e verás explicados o livro e o título. Possivelmente não terão a mesma supposta fortuna daquella dúzia de outras, nem todas valerão a pena de sair cá fora. Depende da tua impressão, leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha (ASSIS, 1906).

A advertência, escrita pelo autor, nos deixa em alerta sobre a suposição do porquê da seleção de alguns textos nessa obra e a metáfora implícita que tece analogias sobre se, de fato, a casa era a vida do autor e as relíquias, seus textos.

Há quem diga que essa casa pode ser o Brasil e as relíquias os instrumentos do sistema governamental. Contudo, essa é mais uma lacuna em aberto, não pontuada por Assis. Essa produção ficcional data de 1906, último livro de contos do bruxo do Cosme Velho[13].

“Relíquias da Casa Velha” é uma obra fundamental na trajetória literária de Machado de Assis, que mantém sua relevância até os dias atuais. Com sua narrativa perspicaz, o autor oferece ao leitor uma visão crítica e irônica da sociedade oitocentista, explorando temas atemporais e universais. [14]

A leitura desta obra é uma oportunidade para compreender não apenas o contexto histórico em que foi produzida, mas também para refletir sobre as relações humanas e as contradições da sociedade, em uma narrativa que permanece atual e instigante.

Entendendo que essa é uma obra que pertence à fase madura do literato, como a própria ressalva diz, temos o prosador decidindo expor as relíquias da casa velha.

 O conto “Pai Contra Mãe” é um clássico machadiano que tem arrebatado muitos leitores ao desenlaçar dos séculos, devido às várias questões inerentes ao caráter humano, muito bem pontuadas pelo autor nessa narrativa. Ou, até mesmo, por várias lacunas enigmáticas deixadas em aberto para interpretação pessoal do público, de forma atemporal.

O foco na desarrumação das classes sociais do Brasil não poderia faltar em uma boa obra do autor de Dom Casmurro, resultando, quase sempre, na relação de seus personagens que simbolizam homem versus sociedade, em comunhão com os sentimentos “bons” ou “maus” que afloram os desejos, algo muito comum para humanidade.

Nesse sentido, as criações machadianas são elementares e singulares, em seu fazer estético e funções dentro do corpus textual. O autor Antônio Candido de Melo e Souza, em seu livro A personagem, apura a tecitura que faz parte do processo de construção dos personagens e características dos mesmos, expondo as obras de uma diversidade de autores e demarcando as linearidades. Porém, quando se reporta a Assis, o crítico nota uma particularidade nos personagens criados à base da verossimilhança.

Machado de Assis é muito famoso por confundir seus leitores por meio das particularidades retratadas das personalidades de seus personagens que, como mencionado por Candido, são criações que são afetadas pela crueza da realidade. Nesses moldes, direcionando o olhar para a figuração do negro na ficção, como personagem na literatura brasileira, Eduardo Duarte, em seu artigo “O negro na literatura brasileira”.

O dilema enfrentado por Cândido Neves, o personagem central de "Pai Contra Mãe", é a escolha entre capturar uma escrava fugitiva para obter dinheiro e sustentar seu filho recém-nascido, ou seguir sua consciência e evitar causar mais sofrimento humano, especialmente à escrava grávida que ele captura.

 A presença do personagem negro, nos deparamos com uma grande escassez de escritores que escreveram sobre o tema ou deram voz e protagonismo à figura do negro como personagem, ou seja, como se fosse um apagamento de um pertencimento étnico, que é fruto da mestiçagem brasileira. Os estudos na área ainda são pouquíssimos. Duarte, compreendendo essas rupturas no seio da literatura, relata essas desproporções:

No arquivo da literatura brasileira construído pelos manuais canônicos, a presença do negro mostra-se rarefeita e opaca, com poucos personagens, versos, cenas ou histórias fixadas no repertório literário nacional e presente na memória de leitores. Sendo o Brasil uma nação multiétnica de maioria afrodescendente, tal fato não deixa de intrigar e suscitar hipóteses em busca de seus contornos e motivações (DUARTE, 2013).

O professor Domício Proença Júnior Filho, efetiva uma imersão nos estudos do trajeto da figura do negro na ficção brasileira, com uma bifurcação que estuda o negro como “objeto”, no caso, como personagem, e o “negro como sujeito”, no sentido autoral (FILHO, 2004).

O que Domício inspeciona são as produções escritas afro-brasileiras no decorrer dos séculos. Um fato importante é que ele nota o mesmo apagamento exposto por Duarte, ou seja, a falta da pluralidade da temática afro-brasileira no panorama literário, que, quando citada, quase sempre está inserida em conceitos voltados para a depreciação.

A presença do negro na literatura brasileira não escapa ao tratamento marginalizador que, desde as instâncias fundadoras, marca a etnia no processo de construção da nossa sociedade.

Evidenciam-se na sua trajetória no discurso literário nacional, dois posicionamentos: a condição negra objeto, numa visão distanciada, e o negro como sujeito, numa atitude compromissada (FILHO, 2004).

Duarte compreende que essa carência da valorização do personagem negro se faz por causa de um “mecanismo sociológico”, que entende a arte como um revérbero do contexto histórico-social brasileiro (2013).

Ou seja, essa hipótese se apoia no fato de historicamente os negros africanos serem trazidos de seus respectivos países para o serviço escravo e não serem observados pelo colonizador como semelhantes, porém, como peça de uma máquina de produção para gerar lucros.

Essas reverberações da sociedade patriarcal se coligam à ideologia do “Eurocentrismo”, que se fez presente no Brasil por muito tempo, essa miscelânea de ideias que apontava para “O branco Europeu” como centro, corroborando de modo a negativar a imagem do negro.

Compreendendo esses apontamentos, observamos que o texto em questão traz, em seu eixo principal, a escravidão em primeiro plano, com todos os aparatos provenientes dessa forma governamental. Segundo Duarte, em “Pai contra mãe”, “A escravidão” é tratada em seu âmago, vista enquanto relação sobretudo agonística em seus diversos aspectos” (2009).

 Notamos a presença da ironia nesses primeiros parágrafos, elucidando pontos específicos da narrativa, tornando-a subjetiva, à medida da propagação da leitura. Tratando especificamente do texto machadiano, Antônio Candido, no livro “Esquema de Machado de Assis”, disserta sobre a narrativa machadiana sob o vértice do recurso da ironia “[...] E o mais picante é o estilo guindado, é algo precioso com que trabalha, e que, se de um lado pode parecer academicismo, de outro, sem dúvida, parece uma forma sutil de negaceio, como se o narrador estivesse rindo um pouco do leitor” (2008).

Ainda que de forma sútil, Machado promove um diálogo com a história do Brasil Império e a gestão escravocrata. Podemos compreender esse fato quando o contista elenca os instrumentos de tortura, comum ao sistema patriarcal, nas primeiras linhas do conto.

O narrador onisciente relata o quão medonhos eram esses aparelhos de punição, pois os escravos eram penalizados com esses instrumentos, caso desafiassem ou se insubordinassem às ordens de seu dono.

Machado concede às suas personagens negras a possibilidade do diálogo, ainda que seja para exprimir suas dores e seus fracassos. O autor, através dessa exposição, permite que as mulheres negras representadas em suas obras exerçam sua humanidade, tão negada pelos senhores da casa grande.

Sobre a presença da mulher negra na ficção de Assis, Duarte afirma:

“Os dramas machadianos referem-se a mulheres tratadas como objetos sexuais que, no entanto, ascendem a condição de sujeitos de suas vidas, nem que seja para buscar o suicídio. E abordam também a forma como o desprezo dos senhores e seus herdeiros é despejado sobre as ilusões das jovens escravizadas” (DUARTE, 2009).

Montaigne explica pelo seu modo delle a variedade d’este livro. Não há que repetir a mesma ideia, nem qualquer outro lhe daria a graça da expressão que vae por epigraphe. O que importa unicamente é dizer a origem destas páginas. Umas são contos e novellas, figuras que vi ou imaginei, ou simples ideias que me deu na cabeça reduzir a linguagem.

Saíram primeiro nas folhas volantes do jornalismo, em data diversa, e foram escolhidas d’entre muitas, por achar que ainda agora possam interessar. Tambem vae aqui Tu só, tu, puro amor... comedia escripta para as festas centenarias de Camões, e representada por essa occasião. Tiraram-se della cem exemplares numerados que se distribuiram por algumas estantes e bibliothecas.

Uma analyse da correspondencia de Renan com sua irmã Henriqueta, e um debuxo do nosso antigo senado foram dados na Revista Brazileira, tão brilhantemente dirigida pelo meu

illustre e prezado amigo José Verissimo. Sae também um pequeno discurso, lido quando se lançou a primeira pedra da estátua de Alencar. Emfim, alguns retalhos de cinco anos de crônica na Gazeta de Notícias que me pareceram não destoar do livro, seja porque o objecto não passasse inteiramente, seja porque o aspecto que lhe achei ainda agora me fale ao espirito.  Tudo é pretexto para recolher folhas amigas (ASSIS, 1899).

Com esse prefácio muito instigante, Machado de Assis abre a coletânea intitulada “Páginas Recolhidas”, que foi lançada em 1899, publicada por B.L Garnier. Podemos, de imediato, apontar um diferencial: essa junção de textos é o primeiro livro de miscelânea do contista, as narrativas dessa seleção apresentam uma vasta variedade de gênero, porém, foi muito pouco comentado pela crítica.

José Veríssimo é um dos poucos críticos que comentaram sobre essas Páginas Recolhidas, e seu olhar sobre o estilo apresentado.

O tema da escravidão surge nas linhas do conto “O caso da vara”, que traz em seu próprio título a citação de um instrumento de repreensão, que é a vara, fazendo uma referência ao próprio assunto do texto, que vai perpassar o sistema escravocrata.

Fomentando mais ainda essa correlação dos fatos, no primeiro parágrafo é apontado que os acontecimentos tinham data anterior ao ano de 1850, hipótese essa que nos direciona a uma inspeção nos registros históricos do Brasil, que na época citada era regido pelo Imperador Dom Pedro II de maneira monárquica.

No início do escrito, o narrador nos apresenta Damião, que é o personagem principal, e percebemos, através da exposição da história, que o mesmo passa por uma situação muito difícil. Logo após desistir do seminário, opta por se esconder na casa da Sinhá Rita, que é amante de seu padrinho, a fim de que ela interceda para livrá-lo de ser padre.

Na casa de sua intercessora, Damião tece estratégias para se livrar de vez do seminário, devido ao medo de ir à casa do seu pai e ser castigado e forçado a retornar à igreja. O personagem faz da casa de Sinhá Rita o seu refúgio. Porém, ao desenlaçar das horas, começou a se distrair com a dona da casa e suas criadas que bordavam.

A pequena Lucrécia, de apenas 11(onze) anos, cria da Sinhá, parou o serviço para rir de uma anedota contada pelo rapaz e foi automaticamente repreendida pela sua senhora, como aparece nesse recorte: “– Lucrecia, olha a vara! A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse prompt, Lucrecia receberia o castigo do costume” (ASSIS, 1899).

Essa atitude contra a pobre escrava torna-se um recurso do autor para revelar como era comum e severo o trabalho escravo infantil, pois as crianças negras escravizadas perdiam toda sua infância, presa aos grilhões da escravidão. A respeito desse pensamento, Duarte afirma:

Porém, as marcas da tortura não deixam de caracterizar como sádico o rigor imperial da sinhá, nem de realçar a dureza das condições de vida e de trabalho da criança escrava. Este surge nomeada pelos signos de apequenamento e fragilidade do físico, que convivem, entretanto, com a leveza de espírito que a faz rir e se divertir com a situação do jovem e com as anedotas que ouvem (DUARTE, 2009).

Vendo a situação da pequena escrava, o moço sente compaixão pela menina e decide ser o padrinho dela. Isso porque ele percebeu que a criança não tinha culpa por apenas sorrir de uma piada contada por ele. Pensou consigo que, caso ela não terminasse a tarefa, ele a defenderia (ASSIS, 1899).

Desse modo, percebemos que o lado humano de Damião aflora, com o sentimento de piedade pela pequena menina, não a vendo como um utensílio, mas como ser humano.

Percebemos que o jovem rapaz apela para Sinhá Rita, para que ela faça uma ponte de comunicação que se estenda entre ele, o padrinho João Carneiro e seu pai, sustentando o fio da esperança, para que a questão do seminário fosse de vez sanada. Isso para ele era algo emergencial. A madame, percebendo a fragilidade do rapaz, decide apoiá-lo e, através de chantagens, consegue desarticular e oferecer-lhe uma possibilidade de conseguir resolver aquele problema.

 Depois do grande tempo de espera e desespero do padre, Sinhá Rita consegue mais um dia de expectação para o pobre Damião. Porém, ao chegar da noite, quando vai ver se as atividades atribuídas as suas escravas estavam terminadas, tem uma surpresa, Lucrécia não havia acabado e é duramente repreendida pela sua dona.

Nesse diálogo, conseguimos notar a severidade na forma de falar da Sinhá “– Ah! Malandra. – Nhanhã, nhanhã! Pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu. – Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!” (ASSIS, 1899). A conversa entre a escrava e sua proprietária ergue a completa fragilidade do negro frente ao regime patriarcal.

“O caso da vara: farsa e tragédia no alvorecer da república”, enxerga, na personagem machadiana Lucrécia, um diálogo implícito com a Lucrécia de Roma, descrita no poema com o título “The Rape of Lucrece” (1594), do autor inglês William Shakespeare. Pois, na romana, ele notou a representação da transição, em um momento político, de uma forma de governo para outra, algo que o estudioso insinua que tenha acontecido, ainda que com menos intensidade, no conto brasileiro, demarcando também a passagem da monarquia para república no Brasil, ainda que distintos em diversos aspectos, inclusive temporal. resta a Damião escolher entre duas opções, e esse momento de reflexão cria uma certa tensão no enredo.

As opções que o personagem central tem são: não dar a vara que Sinhá Rita está lhe solicitando e correr os riscos das consequências após o ato ou dar a vara a sua benfeitora e romper com a promessa que ele fez para si próprio de salvar a inocente criança. Por fim, ele escolhe salvar-se. Percebemos, nesse trecho, o fechar de olhos do ex-seminarista, para a situação.

“Damião sentiu-se compungido; mas elle precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita” (ASSIS,1899).

Resta evidente a contradição de desejos do rapaz que, pela moral, se apieda, mas, pelo individualismo, entrega o outro ao castigo. Investigando esse veio, a pesquisadora Mailde Jerônimo Trípoli, em sua tese “Imagens, máscaras e mitos – O negro na literatura brasileira no tempo de Machado de Assis”, relata que reside nessa configuração uma pista de Assis, que abre uma lacuna para o questionamento da dialética da colonização.

Em 2016, foi publicado o livro “Machado de Assis lido e relido”, sob organização de João Cezar de Castro Rocha. Em meio a muitos artigos selecionados pelo organizador, encontra-se um texto do pesquisador José Luiz Jobim com o título “Machado de Assis e o nacionalismo: o caso das Americanas”, que desdobra muitos paradigmas sobre o fazer estético, que giram entorno de Americanas.

E desmistifica, através das argumentações estendidas ao longo do texto, o principal ponto de tensão, o indianismo, pois, de acordo com ele, Machado retoma essa tradição cultural que faz parte da raiz do nacionalismo na literatura brasileira (2016).

Segundo Jobim, “As americanas são um legítimo descendente do Indianismo, esta vertente do Romantismo que até hoje é vista como exemplo destacado do nacionalismo romântico no Brasil” (JOBIM apud ROCHA, 2016).

O jornalista José Veríssimo discorreu, com muita delicadeza, sobre o não aprisionamento de Machado a uma determinada tradição literária, porém ressalta que o mesmo soube fazer pontes com ambas as tradições. Nesse fragmento, o pesquisador insere:

Como poeta, não foi propriamente romântico, nem propriamente parnasiano, nem propriamente naturalista, e foi simultaneamente tudo isto junto. A cada tendência artística, a cada forma estética, colheu discretamente das flores de beleza que produziram a que se casava com o seu temperamento, ousou-lhe sobriamente o perfume, obtendo da sua mistura um novo aroma, delicado e modesto (VERÍSSIMO, 1977).

Machado de Assis expunha os atos mais perversos do sistema escravagista em sua ficção, levando em consideração que os leitores de sua época, de certo modo, pertenciam à elite da sociedade.  Esse fato não o inibia, ou seja, podemos considerar que havia um determinado público-alvo.

Sobre esse ponto, Duarte apura:

“Ao analisar o tratamento dado por Machado aos afrodescendentes e às reações impostas pelo escravismo, não se pode perder de vista seu horizonte recepcional, formado basicamente por leitores da classe dominante. Assim, ao privilegiar a crítica da elite, o escritor está por vias transversais, abordando a questão e tocando nas origens da grande ferida social de seu tempo” (DUARTE, 2009).

Para entender a polêmica que existiu entre Machado de Assis e Sylvio Romero precisamos reconstruir o período de grandes mudanças pelo qual passou o Brasil em 1870. E, o que inclui a fundação do Partido Republicano, a Lei do Ventre Livre aprovada em 1871, a crescente importância dos militares após a vitória na Guerra do Paraguai e as reformas estruturais impostas pelo Gabinete Rio Branco e que criaram as condições que emergisse uma geração de intelectuais opostos à ordem imperial, era a chamada Geração de 1870.

Tal geração de intelectuais se caracterizava pela oposição à ordem saquarema (do Partido Conservador) que vigorou de modo ininterrupto entre 1848 a 1878. A oposição ocorria em duas frentes, em termos políticos, os componentes eram abolicionistas e/ou republicanos e, em termos intelectuais, opunham-se aos três pilares da ordem imperial conservadora: o catolicismo hierárquico, o indianismo romântico que definia a nacionalidade de forma estetizada e o regime que limitava a participação política.

O tema opressivo do escravismo, que é um sistema que corrói o sentimento de humanidade, ou seja, promove o apagamento da empatia pelo próximo, deixando apenas a desumanização e a visão do semelhante, no caso o escravo, objetificado e atrelado a lucros. Esse ato acontecia principalmente com as mulheres cativas, que na época eram enxergadas como meros objetos de uso e descarte.

Em suma, grande parte das obras de Machado expõe, nas características de seus personagens, os comportamentos humanos de todos os aspectos, dos irrigados na bondade aos enxertados na maldade, demonstrando, com certo enfoque e sem filtro, o lado ruim do ser humano. Com isso, Assis desvela toda a miséria humana, elencadas as atitudes dos homens no presente caso: “O senhor moço”.

Machado de Assis é um ícone do panorama da literatura brasileira. Apesar da origem humilde e pobre, esse fato não o impediu de ultrapassar os preconceitos existentes em sua época, conseguindo uma posição de prestígio dentro da sociedade e tornando-se uma exceção em seu tempo.

Portador de uma escrita singularizada e rico em suscitar debates em sua literatura, possui uma extensa gama de obras, divididas entre crônicas, contos, poesias, peças teatrais e romances. Machado de Assis se tornou um escritor “intocável” por sua postura quase perfeita perante os cidadãos brasileiros, e por ser muito discreto em sua conduta.

Logo na introdução, procuramos efetivar uma breve imersão especificamente na biografia de Machado escrita pela crítica Lúcia Miguel Pereira no intuito de visualizar a figura do mulato nascido em classe pobre desvelado pela autora. Pereira expõe tanto a rigidez da imagem de Machado de Assis quanto a possibilidade de desconstrução dessa imagem.

É seguindo esse segundo caminho que ela opta por descrever seu Assis, expondo um Machado menos conhecido pelo público, uma faceta afrodescendente, um legítimo mestiço.

O tema da negritude em Machado, percebemos uma bifurcação, pois em primeiro lugar temos um autor mulato em pleno século XIX escrevendo com muita propriedade e intelectualidade, fato que por si só desapontava as teorias racistas da época do Bruxo do Cosme Velho.

De outro ponto de vista, quando escreve sobre personagens negros dando voz a seus cativos, atribui a eles a chance de ecoarem suas dores e angústias, expondo assim toda a maldade pela qual eram acometidos devido à escravidão.

Os textos selecionados evidenciam uma certa inquietação de Assis com as questões de sua época.

 Notamos em ambos os textos analisados que o “homem branco” colonizador apareceu sempre dominando o negro escravo como se fosse uma espécie de caçador. Em “Pai contra Mãe”, percebemos um caçador egocêntrico, e sobre esse ponto Duarte afirma: “o caçador encontra sua presa: Arminda uma mulata fujona prestes a dar à luz” (DUARTE, 2009).

No conto, o mercenário Cândido Neves, em uma luta pela sobrevivência de seu filho, opta por entregar a escrava fugida mesmo percebendo que ela também estava lutando pela sobrevivência do filho que ainda estava em seu ventre.

Em “O caso da Vara”, a imagem do caçador é suavizada porque durante quase toda a narrativa ele demostra compaixão pelo outro, o que deixa no leitor uma falsa impressão de que será um texto distinto dos outros com a mesma temática.

O embate de Damião e sua luta para fugir do seminário entra em choque com o desejo de apadrinhar uma pequena escrava, mas, no momento oportuno, ele decide por salvar a própria vida, abrindo margem para a visualização do discurso hipócrita da elite dominante.

Outro assunto é a ridicularização da elite que importava um projeto de sociedade que pudesse imitar a Europa, presente por exemplo em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881). Também é possível encontrar críticas ferozes à escravidão e à sua desumanização, como em Memorial de Aires [último romance de Machado, lançado em 1908.

Trípoli afirma ainda: “O poema, embora aparente descrever a aceitação do cativeiro, denuncia a trágica ironia do paternalismo e as suas consequências. Uma faceta da escravidão, muito conveniente aos senhores e, em parte, responsável pela crença de que, no Brasil, a vida dos escravos era amena” (TRÍPOLI, 2008).

Embora de modo ambíguo e dissimulado, Machado de Assis[15] expõe questões sociais enraizadas na cultura brasileira. Nos seus textos, a escravidão é descrita às vezes de forma simples, econômica e clara, outras vezes de forma devastadora.

Observamos, portanto, o reflexo da imagem de uma país escravocrata e o resultado desse processo ligado ao destino dos personagens principais e secundários.

Dessa forma, embora não esteja presente em sua obra literária uma voz assumidamente negra (ao contrário de outros escritores negros que foram seus contemporâneos, como Luiz Gama e Cruz e Sousa[16]), Machado não aderiu ao discurso da branquitude e não reproduziu a desumanização da população negra que havia na época. O autor, assim, rompia o círculo perverso de reprodução de preconceitos em relação a esse grupo.

A literatura de Machado de Assis é conhecida e reconhecida por mergulhar de forma crítica, complexa e aprofundada nas relações sociais do Brasil. E fez isso a partir de uma perspectiva muito particular, pois sua produção não deixa dúvidas de onde o autor fala: trata-se de um homem negro, de origem pobre e nascido em uma sociedade escravocrata; e esta condição se manifesta na sua produção literária.

Machado de Assis partilhava, como os componentes da Geração 1870, da condição de ser um intelectual em um país sem universidades nem outras instituições que garantissem um meio intelectual autônomo para suas atividades. Assim, nossos pensadores tinham poucas opções e se tornavam funcionários públicos, caso de Machado, ou disputavam as poucas vagas nas faculdades e colégios imperiais, o que se passou com a maioria dos integrantes da Geração 1870.

Nossos intelectuais permaneciam em uma condição de dependência da mesma ordem social que descreviam em seus livros, buscavam analisar e criticar. Por isso, suas atividades se desenvolviam em condições difíceis e até contraproducentes.

Outro legado de Machado de Assis tem a ver com sua trajetória biográfica. Machado foi um homem negro, gago, epilético e de família humilde, nascido no Morro do Livramento, Rio de Janeiro. Apesar de tantas barreiras, tornou-se um dos maiores escritores brasileiros, senão, o maior escritor pátrio.[17]

 

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[1] A Questão Christie foi uma crise diplomática oriunda de uma série de acontecimentos conflituosos na área das relações internacionais, entre os governos do Império do Brasil e do Império Britânico, que ocorreu entre 1862 e 1865. Resolução pacífica do conflito: Liberação dos oficiais marinheiros britânicos. A Questão Christie foi uma das manifestações mais importantes da política externa do Império brasileiro, sob o reinado de D. Pedro II, por estar ligada a uma série de conflitos com a Inglaterra. Recebeu esse nome por envolver o embaixador inglês, no Rio de Janeiro, William Douglas Christie. Houve dois fatos que desencadearam as desavenças diplomáticas, mas o problema de fundo eram as transformações econômicas e sociais que estavam ocorrendo no Brasil e no mundo, contando ainda com uma pitada de sentimento nacionalista.

[2] O chamado "parlamentarismo às avessas" foi o sistema político vigente no Império do Brasil durante o Segundo Reinado. Esse sistema alternava na chefia do Poder Executivo os partidos Conservador e Liberal, baseados na escolha do Poder Moderador. Em dois momentos da história brasileira foram utilizado o parlamentarismo na gestão do Estado. Esta forma de governo implica na existência de um Primeiro-Ministro exercendo grandes poderes do Executivo ao lado do presidente ou, no caso brasileiro, do imperador. A primeira vez que esse sistema foi utilizado no Brasil refere-se ao período do Segundo Reinado no império. Já a segunda ocasião em que foi utilizado ocorreu muito tempo depois, durante o governo presidencial de João Goulart, ou seja, já na República. É justamente à primeira aplicação do modelo de gestão do Estado que se dá o nome de “Parlamentarismo às Avessas”. Depois que atingiu a maioridade e passou a desenvolver as plenas funções do imperador, Dom Pedro II criou um Conselho de Ministros para lhe ajudar a dirigir o Brasil. No horizonte desta ideia, estava a influência do parlamentarismo tal como praticado na Inglaterra. Como a orientação hierárquica dos dois parlamentarismos eram opostas, vem daí o nome “Parlamentarismo às Avessas”. Nesse Conselho de Ministros, um indivíduo ocupava o cargo de Presidente do Conselho de Ministros, o que seria equivalente ao Primeiro Ministro. O escolhido desenvolveria funções de chefe do ministério com a incumbência de organizar o Gabinete do Governo. Entretanto, não havia eleição entre o Conselho de Ministros para determinar seu Presidente. O que acontecia efetivamente era que o imperador Dom Pedro II nomeava tão e somente o Presidente do Conselho de Ministros (a partir de uma lista tríplice enviada pelos Deputados), deixando-o com a incumbência de escolher os demais membros do Conselho, que precisariam ainda serem aprovados pela Assembleia Geral.

[3]'O Brasil é o café e o café é o negro'. Essa frase, comum nos círculos dominantes da primeira metade do século XIX, só em parte é verdadeira. O Brasil não era só café, como não fora só açúcar. Além disto, a produção cafeeira iria prosseguir no futuro, sem o concurso do trabalho escravo.

[4] Com a mão de obra escrava sendo utilizada em larga escala, foram os cativos apelidados de "tigres" os responsáveis pelo recolhimento e despejo da urina e fezes de muitos moradores das cidades durante cerca de 300 anos. Nessa época, a maior parte das casas não contava com banheiros, água corrente ou algum outro tipo de instalação sanitária. Por isso, os moradores das antigas cidades faziam as necessidades em penicos e outros recipientes de metal ou porcelana. Parte do conteúdo, que continha ureia e amônia, vazava dos tonéis e deixava marcas brancas sobre a pele negra, parecidas com listras. Por essa reação química, as marcas se pareciam com as do animal — daí o apelido em tom pejorativo dos "tigres" ou "tigrados". O cheiro dos tonéis, obviamente, não era agradável e fazia com que as pessoas não se aproximassem dos "tigres" enquanto os carregavam. "A pele ficava listrada, com alternância de faixas pretas e outras descoloridas pela ação química dos dejetos. Por isso, esses escravos eram conhecidos como tigres", afirma o jornalista Laurentino Gomes, autor do livro Escravidão, sobre o tema.

[5] A Lei 14.532/2023. Essa lei altera a tipificação do crime de injúria racial, ou seja, os casos de injúria relacionados à raça, cor, etnia ou procedência nacional passam a ser considerados uma modalidade do racismo. O texto ainda prevê novas penas para casos de racismo em contextos de atividade esportiva, racismo religioso e recreativo. A nova Lei 14.532/2023 altera e acrescenta alguns pontos à Lei 7.716/1989 (Lei do Racismo), que continua em vigor conforme as respectivas mudanças. A principal novidade é que, agora, a injúria racial passa a ser equiparada ao crime de racismo. Sendo assim, passa a ter pena de reclusão de dois a cinco anos e multa, assim como nos crimes de racismo. Além disso, agora, os crimes de injúria racial são imprescritíveis. Isto é, podem ser julgados em qualquer tempo, independentemente da data em que foram cometidos. Antes da lei sancionada este ano, a prescrição para injúria racial era de oito anos.

[6] James Watson, laureado com o Prêmio Nobel em 1962, recentemente afirmou que se sentia "inerentemente pessimista quanto às perspectivas da África" e de seus cidadãos, porque "todas as nossas políticas se baseiam no fato de que a inteligência deles equivale à nossa, enquanto os testes apontam no sentido contrário". As declarações de Watson causaram agitação porque implicavam que negros fossem geneticamente inferiores aos brancos, e a controvérsia resultou em sua renúncia ao posto de diretor do Laboratório de Cold Spring Harbor. Mas ele tinha razão? Existe uma diferença genética entre negros e brancos que condene os negros a uma perpétua posição de inferioridade intelectual? A primeira discussão pública notável dessa questão científica surgiu em um artigo publicado em 1969 por Arthur Jenson, psicólogo da Universidade da Califórnia em Berkeley. Ele sustentava que a diferença de 15 pontos nos resultados de testes de QI dos brancos e negros se devia a uma diferença genética incontornável entre as duas raças. Mas os argumentos que ele expunha tratavam de maneira enganosa as provas científicas. Outros estudiosos usaram esses argumentos depois -Richard Hernnstein e Charles Murray em "The Bell Curve" (A Curva do Sino), publicado em 1994, por exemplo, e recentemente William Saletan, em artigos para a revista "Slate"- e cometeram o mesmo erro

[7] O ensaio de Gobineau se tornou conhecido por suas pretensas e densas justificativas sobre a inferioridade racial negra e mestiça, obra que acaba de ser publicada em português, dando aos leitores brasileiros a possibilidade de perceber melhor como autores, a exemplo de Gobineau, influenciaram a questão racial entre intelectuais brasileiros, como Oliveira Vianna, João Batista Lacerda e Nina Rodrigues. Esse conjunto de ideias se tornou a base para a criação de mitos e estigmas vinculados à população que não era branca (SKIDMORE, 1976). A obra de Arthur Gobineau ganha sua primeira tradução em português, feita pela editora Antonio Fontoura em 2021. Mesmo após 169 anos desde sua primeira publicação em 1853, ela continua despertando interesse, não mais pelos argumentos que o autor evoca, amplamente contestados e superados. Mas pelo modo como serviu de perspectiva e base para o racismo e outras ideias que ainda pairam sobre o pensamento científico a respeito da questão racial contemporaneamente. A tradução da obra chegou tardiamente ao público brasileiro. O livro contém 26 capítulos, nos quais o autor constrói seu argumento sobre a base da desigualdade das raças humanas dentro do processo histórico da França pós-revolução e dos destinos da humanidade. Nesses capítulos, Arthur de Gobineau, de maneira bem objetiva na linguagem e sincrética, define, conceitua e caracteriza o que considerava como um dos maiores problemas da questão científica e intelectual de seu tempo, a miscigenação.

[8]  A literatura negra é composta por obras cuja temática está associada à experiência de pessoas negras. Além disso, autoras e autores desse tipo de literatura devem ser afrodescendentes. Desse modo, a obra deve trazer o ponto de vista dessas pessoas. No Brasil, um dos principais livros da literatura negra é Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. A literatura negra é aquela produzida por autoras e autores negros ou descendentes de pessoas negras. Consequentemente, as narrativas, poesias ou peças teatrais inseridas nessa categoria trazem como protagonistas as pessoas negras e evidenciam a sua cultura, ou seja, elementos históricos e étnicos.

É uma literatura essencialmente política, ideológica, e tem como objetivo a afirmação de uma identidade. Assim, tal nomenclatura é mais uma forma de dar visibilidade ao discurso ou linguagem dessa minoria política e, desse modo, valorizar a voz daqueles que, historicamente, foram silenciados.

[9] Lima Barreto (1881-1922) foi um importante escritor brasileiro da fase Pré-Modernista da literatura. Sua obra está impregnada de fatos históricos e de uma perspectiva da sociedade carioca. Analisa os ambientes e os costumes do Rio de Janeiro e faz uma crítica à mentalidade burguesa da época. Lima Barreto foi um escritor do seu tempo e de sua terra. Anotou, registrou, fixou e criticou asperamente quase todos os acontecimentos da República. Tornou-se uma espécie de “cronista” da antiga capital federal.

[10] Na obra machadiana, porém, afro-brasileiros estão apenas nos lugares subalternos. São escravizados, alforriados, empregados domésticos, prestadores de serviço. Aliás, um e outro ganham nome. O paternalismo e a condescendência com que são tratados fixam padrão visto até hoje em nossas novelas. “Morava só; tinha um escravo da mesma idade que ele, e cria da casa do pai — mais irmão do que escravo, na dedicação e no afeto” (A mulher de preto in Contos fluminenses, p.65 — para todas as citações aqui: Ed. Globo, 1997). E ainda: “Raimundo, nove anos mais velho que o senhor, carregava-o ao colo e amava-o como se fora seu filho. Vendo-se livre pareceu-lhe que era um modo de o expelir de casa, e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para rasgar a carta de alforria, mas arrependeu-se a tempo. […] Luís Garcia não dava ordem nenhuma; tinha tudo à hora e no lugar competente” (Iaiá Garcia, p.3).

[11] A crônica é considerada por muitos estudiosos contemporâneos como um “registro circunstancial feito por um narrador-repórter”. Esta concepção moderna do gênero baseia-se na tênue linha entre literatura e jornalismo onde se encontra a crônica, por comumente não só tratar de fatos e notícias, mas também por inserir características literárias ao escrito – este geralmente breve e com linguagem simples. A crônica, porém, não é um gênero surgido na modernidade, como alguns poderiam pensar.   Tradicionalmente, o termo “crônica”, do grego chronos, remete-nos à noção de tempo, oferecendo-nos relatos de eventos seguindo uma ordem cronológica, mais especificamente, uma compilação “de fatos históricos apresentados segundo a ordem de sucessão no tempo”. A presença de fatos históricos faz com que as crônicas, que datam de antes do nascimento da imprensa, tivessem, primordialmente, uma função documental. Já na Bíblia, no Antigo Testamento, por exemplo, era possível encontrar livros denominados “Crônicas I” e “Crônicas II”.

[12] Basicamente é a história de uma família muito pobre em que o pai vive de um trabalho informal e precarizado dos mais desgraçados do século XIX: ele capturava escravos fugidos. Portanto a renda não era fixa, ele só conseguia dinheiro quando era recompensado pela captura dos escravos anunciados nos jornais. Mas a grande ironia fica por conta da situação em que é colocado o protagonista: para salvar a vida do filho, Cândido tem que entregar aos donos a mulata Arminda, que acaba por abortar.

[13] Em vida, Machado de Assis publicou sete coletâneas de contos organizadas por ele. Grande parte desses contos já havia saído em jornais ou em almanaques da época. A exceção é o livro Relíquias de Casa Velha, de 1906, sua última organização de contos. Os contos de Relíquias da Casa Velha são narrados em terceira pessoa, com uma linguagem irônica e perspicaz, peculiar de Machado de Assis. A trama apresenta situações do cotidiano da época, explorando as relações sociais e comportamentais da sociedade carioca do século XIX. Os contos revelam a habilidade do autor em captar os detalhes e sutilezas da vida urbana, com suas características marcantes de humor e crítica social.

[14] À medida em que se celebrizava, Machado foi passando por um processo de branqueamento social, a ponto de sua certidão de óbito classificá-lo como branco… Disponível em https://noticias.uol.com.br/colunas/rodrigo-ratier/2024/02/06/negro-e-critico-do-racismo-um-machado-de-assis-longe-da-fama-de-isentao.htm?cmpid=copiaecola

[15] A natureza deste escritor, segundo Machado, é formada de partes contraditórias, por ser “a fusão do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo.  Estes dois elementos, arredados como polos, heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo animal” (idem). Quem antes era planta (um ser vivo, porém impossibilitado de mover-se por conta própria, a menos que seja transplantado) agora já é animal, ser que goza de mais independência, pois possui mobilidade própria.

[16] Cruz e Sousa (1861-1898) foi o mais importante poeta simbolista brasileiro. Com os livros: Missal (poemas em prosa) e Broquéis (versos) inaugurou oficialmente o Simbolismo no Brasil. João da Cruz e Sousa nasceu em Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, Santa Catarina, no dia 24 de novembro de 1861. Filho de escravos alforriados nasceu livre. Em 1885, Cruz e Sousa estreou na literatura com o livro de poemas em prosa: Tropos e Fantasias, em parceria com Virgílio Várzea, no qual se reconhecem algumas características marcantes do "Simbolismo". Nesse mesmo ano, assumiu a direção do jornal "O Moleque", cujo título se deve à sua rebeldia contra o preconceito de cor, de que sempre foi alvo.

 

[17] Depois disso, Machado explorou quase todos os gêneros literários e se a versatilidade impressiona, a quantidade de material produzido também: escreveu nove romances, 200 contos, mais de 600 crônicas, diversas peças teatrais, cinco coletâneas de poemas e sonetos. Trabalho como tipógrafo, revisor, funcionário público, colaborador para revistas e jornais do Rio de Janeiro. Como carioca assistiu ao fim do Segundo Império e o surgimento da República e sua obra relatou tudo isso.

 

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